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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

26.10.22

Todos conhecemos o enunciado de base: Isto agora é uma desgraça, não há valores, no meu tempo não era assim, caminhamos para o desastre.

No meu tempo é a-histórico. Conheci reaccionários monárquicos de vinte anos que diziam estas coisas. É verdade que tende a ser mais comum nas pessoas de uma certa idade e barriga, mas não é exclusivo.

A mentalidade reaccionária é sobretudo utópica. Recusa o mundo que existe sonhando com um que já existiu e que,  pela lei da vida, não regressa. O nazismo é um exemplo estelífero. Confundiu interpretações  iletradas da política expansionista de velhos junkers  ( camponeses) prussianos ( Frederico e Bismark por ex) com ópera e literatura, amalgamando tudo numa trouxa sociopata. O Freitas, com a sua barriga de 50 anos e horrorizado com as capas do Correio da Manhã, também  suspira com o mundo plácido e respeitador dos seus pais.  A memória, essencial em todas as operações da razão, foge ao Freitas: na aldeia dos seus avós o almoço de domingo e missa lavada escondia a semana de fome aprumada, água do poço e porrada nas desgraçadas que nem os cães levavam.

A utopia reaccionária também vive nos cavalheiros e cavalheiras que sabem muito bem a maneira como deveríamos viver e com a qual concordaríamos se fôssemos diferentes do que somos. Não somos e não gostamos que meia dúzia de iluminados reunidos numa cave decidam as nossas vidas. Os jacobinos, e as suas declinações posteriores, que ainda nem a caneta que escreveu liberdade para o povo secou e já estão a prender e fuzilar o povo,  são tão reaccionários como o Freitas. Ambas as utopias recusam o mundo em que vivem e a sua mudança gradual, ambas se inscrevem numa fantasia psicótica. E muitas vezes mortal.

 

16.10.22

Arrisco pouco, sou um cobarde.

Não sejas assim. Aquela catrefa de gente que arrisca meio ordenado nas raspadinhas é valente? A boa regra ( uma adaptaçãozita ateniense)  é temer o que se deve temer e não temer o que não se deve temer.

O homem que  salvou a Rússia de Napoleão, o Sereníssimo príncipe Kutuzov, também tinha essa fama. Recuou, esquivou-se, calculou. Foi  vilipendiado por Alexandre e por Wilson, o homem dos ingleses em S.Petesburgo, mas não desistiu. Pois, mas eu  gosto da desistência.

Desistir é um refrigério para alma. Ninguém nos pode apontar o dedo. Lançamo-nos com entusiasmo e a tal coragem de que falas. Começamos. A página tantas reavaliamos a situação. É um prazer virar as costas ao mundo. É até um dever, o mundo tem mais do que fazer.

Isto funciona muito bem nos amores e nas amizades (  menos bem em combate mas também se dá um jeito correndo depressa). Desistir - deixar de existir - é amável e compreensivo. Não envolve o outro, não o acusamos. E remata-se muito bem com aquela  deixa imorredoira: O problema não és tu, sou eu.

14.10.22

Não me sinto bem. Como se tudo o que alguma vez possui me tivesse escapado e como se nunca me pudesse satisfazer ainda que me fosse devolvido" ( Kafka, Diários, 16.II, 1915).

Não sei por que carga de água associo isto ao fim das relações longas.

A acédia vai-se instalando dando os sinais do costume: impaciência, tédio, silêncios. De vez em quando um assomozito do velho regime logo posto no seu lugar. Como uma velha fotografia dos tempos felizes. A sensação de nos escapar o que sempre possuímos é óbvia.

A segunda parte também a compreendo. Não existe devolução das ruínas. Já não somos os mesmos dos trabalhos iniciais, a ideia da restauração é impenitente: a ruptura é a história da relação, foi feita pela relação.

13.10.22

É no meio de muita gente  que me sinto mais sozinha.

O célebre síndroma Maria Guinot ( quem tem mais de quarenta anos sofre da recordação dessa cantilena xaroposa) , muito comum no facebook.

Invejo-te  a um ponto que não imaginas. Passo a semana a ver e ouvir pessoas. Sexo, filhos, fobias, opiniões sobre o lince ibérico, pesadelos, disputas de terrenos, filosofias de alguidar, sogras, divórcios. Não escapa nada. Tenho de me interessar. Imagina um mecânico. As pessoas não me contam essas coisas para passar o tempo: a embraiagem ou os amortecedores têm de ser consertados. Daqui resulta que, ao fim de tantos anos,  na vida civil já me é insuportável a conversa de aperitivo mesmo na mais divertida reunião social.

Afinal talvez não sejamos assim tão diferentes. Ambos alucinamos. Tu sentes-te sozinha, invisível, não te compreendem, coitadinha. Eu visto o fato do homem social e finjo interessar-me pela mortal converseta do gajo do lado.

 

10.10.22

A vida é só isto? Trabalhar, casa, comer, dormir? Não há mais nada?

Há. Quedas nas escadas, derrotas do Benfica, cataratas, affairs, insónias. Julgo que o teu problema, assaz comum, está  jacente a uma concepção utilitária da vida.  Enumeras uma série de utilidades mas queres ainda mais.

Quem nos convenceu de que andamos cá para sermos felizes -ou pior, realizados - é um tipo com humor. Repara: nascemos cegos e dependentes, depois continuamos dependentes, a seguir é suposto sermos felizes trabalhando para pagar dívidas; este amável período antecede as primeiras rugas, os dentes caídos e maladias avulsas. O acto final não é nenhuma surpresa : todos lá estarão numa manhã nevoenta para se despedir de ti.

Por onde ir? Pelo outro lado. Tudo o que não fizer parte do pacote, tudo o que  recusar o destino. Tenta resumir a vida a ciclos finitos ( dias, semanas), ou seja, usa o microscópio. Encontrarás bactérias.

 

 

 

 

05.10.22

Não sei qual é a minha zona de conforto.

Zona de conforto. Encontrava este termo em jornais e artigos americanos. Nunca imaginei que  viesse a ser  usado no país da  nêspera ( deitada muito calada a ver o que acontecia) do Mário-Henrique  Leiria e com tantos mexilhões.

Deixemos os jornalistas de negócios. Podemos  ver a coisa como um artefacto contrafóbico. Do grego zone - cinto, faixa,  cintura -  para o zona latino aplicado à geografia.  Um jovem oficial está sitiado em Sebastopol, Crimeia, Inverno de 1855.  Nicolai Petrovich é o protagonista de O Desbaste do Bosque. Nas vésperas de mais uma batalha ouve os acordes de Lisanka e de uma polka, Katienka. Umas taças de chijir ( vinho não fermentado), enrolado na peliça, o gorro enfiado até aos olhos, dormiu com esse sono especial forte e pesado que se tem nos momentos de inquietação e de preocupação perante o perigo. E pronto, temos o Tolstoi ( que esteve em Sebastopol)  a definir a coisa muito bem.

Duvido que  o mexilhão se sinta muito confortável no mar de Moledo e desconfio ainda mais que a nêspera do Mário tenha apreciado o que a velha lhe fez. A zona de conforto é o anti-destino.

02.10.22

As relações amorosas são complexas, tenho de as trabalhar,  isto não pode ser deixado ao acaso.

Complexa foi a guerra da Crimeia, ando de volta dela há ano e meio. Gregos, russos-gregos, beis, otomanos, ingleses, eslavos, walaquianos etc. As relações amorosas são do mais simples que existe. Peguemos em dois grandes grupos: as paixões e as relações duradouras.

As paixões até  uma lagartixa as entende:  um par de pernas até ao pescoço, um cartão de crédito supergold, a mudança de idade. As relações duradouras são política da junta de freguesia: fazes um benefício tens votos, prometes e não cumpres vais de vela, diz a verdade só quando não puderes mentir.

Já aqui contei. Final dos anos 20 século passado. Beryl Markham foi a primeira mulher  a usar a avioneta em exploração do mato ( Tanzânia)  para fins de safaris.  Perguntaram-lhe  por que se envolveu com  o barão Bror Blixen ( sim, o que foi  casado com a Karen Blixen,  née Dinesen, do África Minha). A resposta dela : We were alone in  elephant country...drinking champagne.

26.09.22

Tenho maus pensamentos, sou vingativa em imaginação.

Óptimo. A imaginação é como o sonho: estamos lá mas com uma coroa de plástico na cabeça. Ainda por cima esses maus pensamentos guardam-te  de más acções. Estobeu atribui a Antifonte ( não é líquido):  Quem não desejou nem experimentou o que é mau e torpe não é prudente. Os maus pensamentos podem assim ser uma selecção adaptativa. Pensar em lixar o outro não é lixar o outro. Um leão macho recém vitorioso na luta contra o anterior macho residente não pensa em matar as crias do bando: mata-as. As fêmeas entram em cio e ele propaga os seus genes.

Os maus pensamentos também são uma categoria escorregadia. Imagina que tens bons pensamentos sobre um gajo. Imagina-te a ir beber um copo com o moço, a rir e a conversar, uma semana  de troca de  mensagens infantis e depois cama. É bom não é? E se o gajo for o gajo da tua irmã?

Tal como no sonho os pensamentos não são bons nem maus, não existe uma inscrição moral. O que fazemos é o que conta. Por isso só às vezes somos leões: não pensamos.

24.09.22

Não existe verdadeira amizade, sinto-me traído.

Parece-me impossível: se te sentes traído por amigos é porque os tinhas, portanto, existiam. A dita  amizade  é um produto da  evolução. Os humanos imaginaram relações fora da competição - sexual, recursos , territórios, ideias - e a coisa corre muitas vezes bem, mas é apenas imaginação.

A história é um rolo compressor. Diógenes Laercio inventou-a, Montaigne citou-a e Derrida popularizou-a: Aristóteles terá dito: Ó meus amigos, não há nenhum amigo. A verdade é que o estagirita não escreve isso. Na Ética a Nicómaco ( Nic. Eth. 1171 a) discorre sobre  a amizade como qualquer pessoa no facebook: são poucos, devem ser bons, estão lá para os bons e maus momentos etc.

As amizades nascem, envelhecem e morrem como as flores. Não existe nenhum mistério. Já o número exacto de mudas da água do bacalhau nas 24h a seguir às primeiras seis mudas consecutivas, esse sim, é um osso duro de roer.

 

 

22.09.22

Não suporto a hipocrisia. Desprezo-a.

A hipocrisia, como o nome indica, é um efeito de palco. Deduzo, portanto, que não gostas de teatro.O que te posso aconselhar? Coisas da plateia: o assassínio, a guerra, o suicídio, a sepultura em vida como da pobre Antígona. Se disséssemos sempre a verdade, as relações, quaisquer relações, não duravam mais de dez minutos. Incluindo as tuas.

Podemos ir por outro caminho de pé-posto. Quando as pessoas me saturam afasto-me. Gerir a distância é uma arte difícil ( sobretudo em combate), eu sei, mas útil. Os humanos  aperfeiçoaram  a deontologia da distância: linguagem corporal, silêncios tecnológicos (  a catrafada de dispositivos é um maná), a palavra escrita e a falada. Se aprenderes a interpor uns metros mentais ( às vezes até físicos) entre ti e quem te satura não precisas de devaneios  sobre a sinceridade.

Se o outro não perceber a distância tens sempre o bom e velho efeito de palco: hoje não posso, estou um bocado constipado. E fungas.

 

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