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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

27.02.22

O sentido de tempo, ou da duração, é adquirido quando somos bebés. Constrói-se através do intervalo entre o desejo/necessidade e a satisfação. É por isso que a certa altura o bebé no quarto ouvindo a mãe na sala a dizer  que já vai suporta a fralda molhada ou a fome. Isto é consensual , desde os primeiros investigadores modernos  ( Fraisse) da coisa até alguns pediatras e psicanalistas ( Tustin,  Pollock etc). Dito de outro modo, ganhamos o   sentido de tempo ( e do real)   aprendendo a controlar a frustração.

Para o curioso destes matos isto coloca um problema: o que usamos quando sentimos que alguma coisa  ( por ex, uma relação antiga )  está a acabar? Não desejamos  que acabe mas sentimos  que está a acabar. Ficamos  então frustrados porque a coisa não acaba de vez? Se sim que mecanismo usamos?  Talvez isto explique a paralisia emocional em algumas pessoas. Reagimos ao fim da relação ( tristeza, melancolia), mas também aguardamos , mais ou menos tranquilamente, que a coisa termine de vez porque é esse o nosso desejo.

Por outro lado, é potável a obsessão com o apagar das marcas do tempo no corpo. É uma indústria que se cruza com outras: a  do turismo senior, da máscara de lama e banho de algas etc. Nada a opor, cada um põe o dedo no dique como bem entende.

Outra possibilidade é ir com o tempo. Aceitar que uma relação veterana já deu o que tinha a dar, fazer as pazes com um amigo desavindo, mudar o óleo do motor  do carro na altura  certa. Quando nos despedimos do  amor num aeroporto damos um beijo e contemos as lágrimas, não fazemos sexo.

 

23.02.22

Não temos uma visão clara da actual mobilidade das relações duradouras. Os números  indicam com  tenacidade o aumento progressivo dos divórcios mas isso diz-nos pouco: tenho na consulta  casais  juntos há vinte anos, com filhos,  que nunca passaram no cartório muito menos na igreja. A langue de bois remete-nos para  a crise, a falta de emprego etc. Querem dizer que quando se dá a recuperação económica os números baixam? Está bem abelha.

No meu pequeno canto faço outras contas. As relações longas tendem a cristalizar em categorias anti-amorosas: a cooperação familiar, a economia  comum, a propriedade sexual. Ora, a base da uma relação amorosa é a atracção mútua. Sem ela as relações longas caem num amável logro: temos uma relação porque estamos juntos. As relações amorosas assentam no princípio inverso: estamos juntos e por isso temos uma relação.

Já sei que me  vão falar do desgaste natural do tempo. Sim, o tempo ( e o sal) só  faz o bacalhau e os presuntos e muito bem. Não há nenhum motivo  para que o tempo  mate uma relação. Ele é o culpado sistémico, o Shylock ( ou outro judeu qualquer) da política amorosa. Quantas vezes  não fiz mediação conjugal  em relações  com dois ou três anos?

Quando uma coisa tem de acabar isso não se discute. Do que falo aqui é do antes. O tempo, o tal judeu sistémico,  é a causa sem efeito.

             

 

 

22.02.22

 

Quem é que hoje ainda convida um amigo para comer apenas  umas batatas caseiras cozidas com um fio de azeite de lagar colectivo, daquele que mancha os dentes?

A cozinha é uma actividade anarquista e por isso recupera raízes tão antigas. Não é bem uma organização nem uma sociedade, mas uma ideia anarquista. Mesmo quando cozinhamos só para nós, pensamos : fulano ou beltrana haveria de gostar. As mais das vezes cozinha-se para partilhar e oferecer, recusando a ideia de posse. A comida  só existe para ser repartida. Mauss sabia isto tudo.

As tais  raízes  são colectivas  e estranhas à ideia de lucro. Claro que, como tudo o resto, a cozinha soçobrou ao apetite comercial e ao abastardamento dos géneros. Da indústria alimentar de massas ( as humanas...)  à  estética pornomolecular pode sobrar pouco para a militância anarquista, mas sobra alguma coisa. Escolher nos mercados tradicionais  as pequenas vendas das velhotas ignorando  as prateleiras liofilizadas é um passo. As trocas envolvem dinheiro, é verdade, mas cinco euros trazem tomates, ovos sujos, coentros, cebolas novas terrosas e ainda sobra muito.

Outro passo pode ser remar contra a corrente. Se a ideia coerciva  de Estado for a de comer para correr, a perturbação anarquista será a de comer para perder tempo;  desprezá-lo mesmo. Sobretudo ir passando a mensagem de que uma mesa simples, ligada à companhia e à partilha mas exigente  no sabor das coisas, pode  fazer cócegas à polícia  higienista  ou à uniformização do ketchup entre dois likes no instagram. É tonto ou irreal? Não sei. É meio anarca.

 

 

20.02.22

Apaixonou-se pelo carteiro que lhe entregou a sentença do divórcio, contava o El Mundo em Agosto de 2018. Até aqui nada de vibrante: podia ter sido pelo polícia que a multou ou  pelo nadador salva-vidas que  a resgatou.  Os vínculos têm tanto de pretexto como de necessidade. Mais sumarenta foi a resolução do problema: como voltar a vê-lo? A mulher começou a enviar cartas a si própria. Com emails e whatsapps e restante parafernália a coisa não teria esta doçura.

Temos aqui, portanto, um mergulho nas actividades  dos sacerdotes  avésticos orientais ou, já que  a mulher parece ocidental, nas dos medos ( magos). A crença na magia pode ter reforçado  a outra crença, a da que aquele homem era o homem. Se o carteiro tivesse  mudado de zona o que teria feito a mulher? Gosto de pensar que talvez se tivesse apaixonado pelo substituto. Os desencontros também têm muito potencial amoroso.

Nada sabendo da senhora ( nem do senhor),  é óbvio que o registo deste episódio se deve ao efeito que provocou no jornalista e nos seus leitores. Adoramos pensar que dois seres destinados  um ao outro conseguem cumprir a profecia. Magias.

17.02.22

A expressão a minha vida seria divertida se fosse verdadeira. Não é.

É notável como uma coisa tão frágil e maravilhosa pode ser desprezada. Acorda-se vivo, os os nossos estão bem,   o café está feito: se digo isto na clínica  olham-me com um sorriso de compreensão pelo tolinho que os devia estar a tratar e afinal não acende as luzes nos andares todos.

Do optimismo não sei nada salvo antes de cada jogo do Glorioso, mas do desperdício, ao fim destes anos todos, sei alguma coisa. As pessoas  acham vulgares tantas coisas boas que não lhes passa pela cabeça que possam ser traídas na próxima esquina. O contra-argumento conheço-o de gingeira: então devíamos andar tolinhos de  contentes porque os miúdos estão bem, o carro não foi parar debaixo de um camião,  o ordenado foi depositado etc?

Não se trata de andar contente ou triste. Ele há malta que anda contente em jornadas vingativas e outra que anda triste porque  que pesa  cem gramas a mais. Trata-se de compreender que o que temos de bom  em cada instante é um prazer fragilíssimo. Sobretudo aceitar que nada nos pertence:  o aluguer é renovado todo os  dias.

16.02.22

Aplicações de encontros. É esse o nome do Tinder, do Happn e de muitas outras. É um nome razoável: simples, directo ao assunto. Nos últimos três-quatro anos coleccionei dezenas de casos de pessoas que mudaram a sua vida sexual  por causa destas aplicações. Já dá para fazer uma pequena e modesta  análise: tenho as notas de 18 histórias. Todas mulheres, nem todas hetero, todas abaixo dos 49, tudo  casos que conheço bem: estão ou estiveram em terapia ou em aconselhamento pontual ( eliminei as consultas sem seguimento).

Um dos primeiros que me chamou a atenção foi o de uma mulher  de  31 anos, muito agraciada pela natureza, inteligente  e com sentido de humor. Para que raio precisava ela de uma aplicação de encontros? Quando a conheci melhor  compreendi. Um par de relações gatadas, nenhuma vontade de se comprometer -  bastante de voltar a ter sexo -, vida profissional preenchida. À noite, sozinha,  tentava encontrar alguém minimamente interessante e depos logo se veria.

 Estas aplicações decorrem da natural presença  na nossa vida das novas   ferramentas de socialização electrónica. Não foi por acaso  que os criadores do Tinder  atarracharam a aplicação ao Facebook: pôr gente  real em contacto, evitar os perfis anónimos (não totalmente , mas enfim), o  Instagram já está acoplado ( o que acontece também no Happn) . Fotos, perfis sociais, conversas descontraídas; ou seja, o antigo café de bairro ou discoteca do século passado em versão tecno. Com algumas diferenças.

 A principal é que todas as mulheres me disseram, de forma mais ou menos explícita, que o envolvimento sexual era o objectivo. Não tinham ilusões  sobre o que os outros queriam. E, como sabemos, sem ilusões as coisas correm melhor. Ainda assim, uma que resistiu algum tempo às aplicações de encontros tinha vergonha de encontrar pessoas conhecidas ( no Tinder, porque o Happn é para isso mesmo): vergonha que pensem que estou desesperada. Trabalhou-se  a coisa e lá acabou por aderir . Divertiu-se imenso, mas continua sozinha.

Algumas das mulheres ( cinco ) eram casadas/ juntas ( as mais velhas) . Fartaram-se de fantasiar com antigos colegas de faculdade, clientes ou vizinhos e quiseram mais. Lá criaram perfis falsos no FB, mas por causa das fotos optaram por candidatos de outras paragens. Este grupo mereceu-me particular atenção porque a mobilidade era menor do que nas mais novas e a solidão era de outro género; sobretudo porque assumiram fisicamente uma necessidade em vez de a camuflar ( sublimar na lalangue analítica). Três delas chegaram a vias de facto e concluiram que foi divertido mas não extraordinário ( e trabalhoso) e regressaram à modorra habitual.

Desdramatizando: do  que constatei, estas mulheres, de uma maneira ou de outra, conseguiram escapar à solidão ( sexual, narcísica, relacional) apenas para descobrir depressa que  essa escapatória é breve.

A tecnologia acelera  e facilita a satisfação  do desejo; a  frustração essa é do tempo da pedra lascada.

 

15.02.22

Já ouvi centenas de  justificações para divórcios. Todas excelentes e elaboradas. São como os fuzilamentos: ninguém se lembra de dizer que foi por causa de um mau almoço. Recordo uma transmitida  pela mulher, jovem, com uma bebé de um ano: Ele está sempre a ver programas de que eu não gosto e não me deixa ter o comando. É uma boa causa.

Há uma, no entanto, que nunca ouvi: o sexo era mau. E é notável porque  o que distingue um casal de um par de amigos ou de irmãos que vivem juntos é o sexo.

Quando falo de sexo falo de tudo: provocação, aggiornamento, evolução, privacidade. Sem  dar conta as pessoas vão perdendo a zona vermelha: dos cheiros, risos, pele, excitação. Isto faz com que o casal constitua  a comissão política apenas sobre a intendência: contas do gás, dentes das crianças, charros dos adolescentes, microondas avariado etc. Serão assuntos  importantes, acredito, mas  enredados numa lógica cooperativa semelhante à da vida profissional ou do condomínio.

O quarto ( ou equivalente) é o espaço conspirativo que ignora a lógica  cooperativa. O que lá se faz não paga contas nem garante boas notas ao filho cábula. O que lá se faz é anterior a tudo o que se faz depois. O abandono da subversão sexual é tão brutal que os casais nem se lembram dele na altura de justificar  a secessão.

 

14.02.22

 

A velhice e a clínica  ( e lá voltaremos) têm-me ensinado umas coisitas. Demasiado tarde para as aproveitar como sempre acontece comigo, mas ainda a tempo de as passar. Uma delas é que não existe nada mais duro e difícil do que a generosidade, essa prima radiosa da bondade.

Gasset brinca  ( El Espectador, 1925) com o sentido original do termo ( testemunha, tradução  literal do martyros grego) quando uma ninfeta o interpela. Ela quer saber como Gasset vive sem apanhar sol:

- Es qué yo no vivo, señora.

- Pues qué hace usted?

- Asisto a la vida de los demás.

É por vezes a sensação que o psicoterapeuta  tem: a de assistir  à vida dos outros. O objectivo, infantil talvez, reconheço, é extrair os factores comuns - o  que existe em todas as relações, em todos os cenários. A tarefa lá  vai, aos tortolos, hesitando entre o desperdício e a solidão. Tenho notado um ponto comum nos que menos desperdiçam e menos se sentem sós: a generosidade.

Estarei a ficar velho e piegas? Velho de certeza, piegas não: continuo  o mesmo bode egoísta. A descentralização do ego faz de facto muito bem. Como é que conseguem? Talvez porque no fim de contas os generosos recebam uma recompensa ambrosiana: dependem menos dos outros. Desperdiçam menos e  suportam melhor a solidão.

13.02.22

As memórias são sempre más: se são boas são más porque são de um tempo  irrepetível; se são más atormentam-nos.

Um psicanalista chanfrado, Ferenczi, num texto  com um título  ainda mais chanfrado ( The psychic effect of sunbath, 1914 )  discorre sobre a neurose de domingo . A ideia é que todas as memórias depressivas   ligadas a uma data ( dia, hora, ano)  específica  são um gatilho que faz regressar um estado de impulsos reprimidos ( uma constante psicanalítica). Ou seja, deprimimos porque nos lembramos da repressão.

É possivel, pese a chanfradice, que o homem tenha uma certa razão. Quando recordamos certos episódios recordamos também a impotência: apeteceu-me sei lá quê, só queria desaparecer etc, tive vontade de lhe  ir aos fagotes  etc. É curioso que talvez aconteça uma ligeira  variação com as boas memórias: ficamos deprimidos porque somos impotentes para regressar  a esse tempo e repetir a experiência. Pior ainda se não a aproveitámos como devia ser.

Utilizo a coisa em terapia: arquivar. E utilizo  quando a pessoa necessita de aprender a viver com uma  má memória ( das más mesmo). Recordemos a teoria do Ferenczi: deprimos porque recordamos a repressão de impulsos associados a determinado acontecimento. Não chega. Por vezes é mesmo a mágoa e a dor: ao natural.

Para conseguir arquivar precisamos de conceder à má memória  um lugar respeitável. Pode ser   uma morte, uma ofensa, um amor roubado, a coisa tem é de ter direito a coexistir com o resto da maralha. Ora... isto briga com a tendência natural de querer esquecer.

Arquivar significa então reconhecer a impotência diante do passado. Arrumar as más memórias numa  prateleira poeirenta porque elas fazem parte da mobília. Significa, num campo mais vasto, aceitar que  a vida é um caminho para  a derrota final e inexorável. E é um caminho radioso porque há várias metas volantes  deliciosas que só apreciamos se lhes dermos o devido valor. O valor da excepção.

 

11.02.22

Forerindring, a dupla recordação, a invenção do amável Kierkegaard. Já a trabalhei  várias vezes nos  livros  e nos blogues.
Um casal de velhos junto à lareira. Ela lembra-se daquela vez em que quase contou ao marido que o tinha traído sexualmente quando eram novos.  Isto difere da memória  porque não é uma condição transitória como ele diz? Dá o exemplo da demência. É curioso que quando se instala  um défice cognitivo na velhice as memórias antigas são as últimas a cair. Talvez ele tenha razão.

Então o foreindring interessa-nos como técnica para organizar a memória e o  tempo. O dinamarquês  dá o exemplo de dois homens que recusam rever, por razões diferentes, um determinado lugar. Um deles pode ser motivado por  querer  re-recordar: manter a memória que organizou desse lugar. Tive essa experiência quando   trabalhei na casa onde nasci e vivi até ser adulto. Salas, quartos, paredes,  sons, cheiros: um mundo inteiro reapareceu, mas ainda consigo re-recordar essse mundo à luz da minha infância e não como espaço de trabalho.

Parece então que por vezes queremos recordar a recordação. O foreindring faz de nós argonautas criativos a traçar um percurso que já fizemos.

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