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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

10.02.22

Uma pequena história contra o sucesso. Pela derrota.

George Six. Conheço a vida de muitas personagens do mundo dos white-hunters do século passado e  a de George Six é uma das melhores ( cortesia de Brian Herne). Saiu de Londres como médico  e foi para  a Tanganica ( actual Tanzânia) em 1951 (ou 1953? ) com  a intenção de  se tornar agricultor. Abriu  uma loja de armas em Arusha e comprou uma  herdade em Kiru Valley. Infelizmente a tripassonomíase ( tse-tse) infestava a região e  em vez de gado a terra fervilhava de búfalos , elefantes e rinocerontes. Num ápice  tornou-se  amigo de famosos caçadores como Stan Lawrence e Jacky Hamman e aprendeu a caçar. Tão depressa  retirava um apêndice como consertava um motor diesel ou dizia o nome científico de um peixe.

Six falava inglês, francês, swahili, espanhol e alemão ( tinha sido criado e viajado por uma família ligada às artes e ao cinema). Em 1956 recebeu em Arusha  Leni Riefensthal que queria fazer um documentário sobre o comércio  de escravos na África Oriental ( o Scharwz Fracht ou Black Cargo) . É normal os glorificadores de exterminadores de judeus terem esta ternura por outro povos. Numa das deslocações tiveram um acidente de jipe em Garissa Bridge nas margens do Lago Tana. Leni  ficou ferida, foi recuperar à Alemanha  e regressou para acabar o filme. Mais tarde o socialismo tanazaniano nacionalizou as grandes herdades e a de Six ficou ao abandono.  Ainda assim aceitou um convite do governo para desenhar aldeamentos turístico-cinegéticos  no Serengeti. Foi viver para Dar es Salaam e casou outra vez desta feita com uma americana de origem irlandesa. Em 1980 não aguentou o novo fôlego marxista tanzaniano e emigrou para os EUA  onde acabou os  dias a projectar jardins aquáticos em Raleigh, Carolina do Norte.

Leni justificou-se numa entrevista, em 2002, pouco antes de fazer cem anos: I don’t know what I should apologise for. All my films won the top prize.  Six não ganhou nada, só perdeu.

09.02.22

Da raiva. É um sentimento ligado à rejeição. Transposto para o colectivo podemos perceber o cuidado com que os manipuladores políticos tratam a comunicação; sobretudo de medidas que façam com que as pessoas se sintam rejeitadas.  No outro dia  passei os olhos por um dos últimos estudos sobre personalidades borderline. Confirma o potencial explosivo da rejeição: funciona como um gatilho. A questão está em saber se as personalidades ajustadas conseguem digerir melhor a rejeição em situações anormais.

A rejeição amorosa, por exemplo, não existe na vida colectiva. Tentemos   substituí-la pelo abandono. Os líderes e os strata  ( entremos já no dialecto gramsciano) dirigentes aparecem como desinteressados do destino dos que os elegeram. É possível que o sentimento de rejeição despolete raiva. A  forma é pouco evidente. Gramsci usava o termo revolução passiva: uma  transformação molecular que ocorre   sob a superfície da sociedade.
Continuando o exercício perigoso agora regressando ao indivíduo. Será um pouco como a mulher  que, sob o desprezo do marido ( ponham as variações que quiserem), vai começando a ler outros livros,  a conhecer pessoas diferentes e  a desejar coisas que nunca tinha desejado. De novo no colectivo, a revolução passiva seria a resposta de uma sociedade ajustada à rejeição a que é votada pelos seus governantes.
Eu não desprezaria  a designação "passiva":  nisto como nos cães os calados são os piores.

08.02.22

Saudade. É de bom tom elogiar a suposta originalidade portuguesa ( origem no latino para solidão) que não existe. Por acaso também me faz sentido o anglo-saxónico miss you ou home sick. Faltar-nos uma coisa ou estarmos doentes pela falta dela é bem apropriado. Seja como for a emoção em causa é  reconhecida por todos.

Ao microscópio a saudade parece  irracional. O’Neill explicava melhor:

 Chorar encostada a uma saudade

 bem maior do que eu,

Que não fosse esta tristeza

Absurda de cada dia

O curioso é que é das emoções que vejo mais vezes racionalizada. Há crimes  em nome do ciúme, do amor  e do ódio, raramente  por causa da saudade.  Habituamo-nos à ausência do outro, temporária ou definitiva ,  também (mas não só) sob  a forma do luto.  A racionalidade  é assinalada através do reconhecimento da impotência, o que, como sabemos, é sintoma de saúde mental evitando identificações com Napoleão.

A tristeza absurda  de cada dia é estribada numa  emoção suportável e também  é muito racional e saudável. Assumindo o absurdo da tristeza ela torna-se digerível como um dente que caiu ou uma tendinite que não passa.

07.02.22

O problema da infelicidade sexual, dizem, é  a vida moderna. De facto. Bons tempos  sexuais  foram os das pestes, das guerras religiosas, das invasões napoléonicas, do Hitler,  da Stasi, da mortalidade infantil , das fossas a céu aberto, da pneumónica e, claro, das lamparinas de azeite. Sem preocupações. A quantidade de  aldrabões encartados também é  a mesma e o truque idem: dizer  às pessoas o que elas querem ouvir; tratá-las como crianças.

Quando tenho uma mulher de família  a queixar-se de que o sexo não corre bem por causa da vida moderna - falta de tempo, correria  para o trabalho, filhos, filas no trânsito - ponho os pé sem cima da mesa e recosto-me. Incentivo-a a elaborar sobre essa bizarra natureza do sexo entre pessoas casadas ( oficialmente ou não) com... outras : quando se quer alguém arranja-se tempo, lugar e oportunidade. Não  consta que esses marcianos sejam todos desempregados, sem filhos ou vivam numa comunidade amish sem automóveis.

Findo o desejo  podemos procurar as  desculpas esfarrapadas que quisermos. Não conseguimos: tão certo como os impostos e a morte.

 

 

06.02.22

A França sob o jugo nazi não ficou dividida em duas, a zona ocupada e a dita livre ( uma anedota). Foi em seis.  Vichy, a italiana, a Alsácia-Lorena em que dois departamentos foram anexados a Gau Baden e  ao Sarre Palatinado,  o Nord e o Pas de Calais sob comando em Bruxelas, a zona interdita que ia desde a foz do Soma à fronteira suíça e o resto da  zona ocupada. A estas seis ainda podemos acrescentar, a partir de Abril de 1941, outra zona interdita de Dunquerque a Hendaia ( uma faixa de 20km de largura) e a Argélia .

Imaginem definir nesses tempos o que  era um francês ( mesmo com a depuração de judeus, maçons, comunistas etc). As fronteiras naturais e artificiais, as demarcações provisórias, a política, a guerra, a resistência, a colaboração alegre e vergonhosa de Brasilach e amigos, a colaboração forçada. E por aí  fora.

O discurso de Cicero é em defesa de Arquias que pediu  a cidadania  romana apesar de ter nascido na Lucânia. Ainda mais interessante é a chegada de Édipo às portas de Colono. Velho, cego  e portador  da maldição. Nada é assim tão simples, dizem. Pois não. Há um século a Europa ainda estava  imigrada em Àfrica e na Ásia. Impôs regras, leis  e costumes, regulou arquivos culturais, capturou  antiguidades, dominou economias  e produções. A Índia não era um território virgem  e bárbaro, mas os ingleses entenderam que   assim a podiam imaginar; a China muito menos, mas não se livrou de duas guerras do ópio que  a obrigaram a aceitar navios  e comércio estrangeiro. A Síria e a Líbia foram capturadas pelos maometanos sem apelo nem agravo ou, se quiserem ir pela lengalenga com que Claudio Torres explica  a presença árabe na Península, convidaram-nos a ir para (A)lá.

Não se trata  da cantilena do fardo do homem branco, da expiação da culpa. Trata-se de compreender os ciclos históricos. A mistura  de capitalismo com estado social é atraente para populações que vivem com um nível de vida pré-capitalista. Rejeitar essa pretensão em nome da identidade cultural europeia é risível e, sobretudo, inútil. As identidades grupais não se legislam, não se amarram a cordões sanitários. Ainda por cima as comunidades imigrantes  ( migrantes na língua de pau) já fazem parte das culturas europeias.

 Tratar os imigrantes como cidadãos, e isso inclui os deveres, é  a única opção.

 

05.02.22

Os telefones convencionais  não alteraram uma cultura da escrita. Em 1982, Walter Ong, um padre e professor de Yale abespinhado  com as relaçoes entre a oralidade e a alfabetização, escrevia que  a escrita dava  ao  grafolect ( uma escrita estandardizada como o inglês) um poder  muito maior do que qualquer dialecto puramente oral. Pois, mas também vaticinava que a palavra falada resistiria, porque toda  a escrita tinha de se submeter  ao mundo do som. 

Os telemóveis são interessantes no fim das relações amorosas. Não por aquilo para o qual foram pensados - falar - mas pela escrita.  Quantas vezes  uma mulher me diz indignada : Ele acabou comigo por SMS.  A bem dizer, a tecnologia não mudou nada de essencial  no mundo das rupturas amorosas. Essa mensagem é uma fala.

A queixa da mulher seria  a mesma se ele tivesse chegado à mesa do café e tivesse vocalizado está tudo acabado. Talvez sim, talvez não, mas a forma mudou.  Aqui lembro-me de Walter Ong e dos seus lamentos sobre o fim da retórica. O homem teria mais dificuldade em ser tão sucinto. Pelo menos teria de ouvir a mulher. Seria uma coisa a dois.

Então o que mudou? Talvez o que muda sempre com a tecnologia: a velocidade do processo. Isto levanta o problema de saber o impacto dessa velocidade na comunicação e, no caso analisado, na desordem amorosa. A velocidade implica a solidão do actor. Fica o único  responsável pela espessura da interacção. Quando só se namorava por carta ninguém desligava o inexistente telefone  na cara de ninguém nem era comum acabar por telegrama.

04.02.22

As redes sociais, o poder das redes sociais: os bem pensantes  tremem de pavor enquanto espreitam  o   facebook do vizinho ou o twitter da amiga. Pois sim, sem dúvida que ajudam o populismo. Como ajudam o escrutínio da acção política, a rapidez da acção em desastres naturais ou a encontrar o bobi perdido da Carla Vanessa.

Nenhuma  ferramenta tecnológica  é boa ou má em si mesma ( até a energia nuclear é hoje considerada limpa ). O telefone, a rádio e o automóvel, por exemplo, tanto servem para planear e cometer homicídios como para salvar vidas.  O que acontece é que o velho aparelho de produção de influência ( dos media  às academias) tem  agora de  ouvir  a voz do povo que tanto diz servir.

As grandes mudanças  tecnológicas são irreversíveis. Ninguém abandona o automóvel para regressar  à carroça nem troca o telemóvel pelo pombo-correio. Resistir às mudanças é bom, faz parte  da dialéctica, mas recusá-las é outro osso.

Uma dessas recusas é a teoria de que a tecnologia criou uma sociedade  de ódios e rumores permitindo que qualquer  um diga e escreva o que lhe apetece sobre não importa o quê nem quem.  Isto não é novo. Os socio-psi de alpaca nunca perceberam que não é  o meio - a multidão - que transforma o pacato Zé num vândalo. O pacato Zé é uma construção da sogra, do trânsito,  do patrão e sei lá mai o quê. Toda  a santa semana. Aos  domingos, anónimo no meio da tal multidão, sente-se livre para atirar um pedregulho a um fiscal de linha que não conhece de lado  nenhum. A multidão não criou nada, revelou.

Os ódios e os boatos nos salões e nas chancelarias eram sanitariamente separados dos dos lavadouros públicos e das tabernas. Agora convivem  alegremente. É a democracia, estúpido.

03.02.22

Suponho que seja um movimento convergente: os novos são hoje  mais atinados, os velhos estão  mais amalucados. É  contrário à  tradição  do enfado diante da decadência? Tanto melhor.

Os novos quase nunca têm  mais do que um irmão ( com frequência são filhos únicos), muitos cresceram com pais separados, confiam na tecnologia para lhes indicar os caminhos do bosque. Têm de ser sólidos.  A lengalenga do facilitismo escolar só a compreendo  a quem não tem filhos. Os miúdos de hoje estudam muito mais. Os meus  tinham testes com a matéria até do ano anterior: comigo dava motim ou encenação de crise psicótica.

São porventura mais lânguidos, ficam em  casa dos pais mais tempo? Talvez. Os ursos também hibernam, mas  isso não os impede de limpar o sarampo ao primeiro petisco  primaveril. Para além disso é inteligente  não ter pressa de entrar neste mundo adulto em que os impostos nos comem vivos, os cãezinhos têm papás e o tédio sobrevive aos antidepressivos. 

A cria mais nova está em psicologia. Pergunta-me  a diferença entre um sociopata e um psicopata. Respondo-lhe que não sei. Fica meia desiludida. Ofereço-lhe um conselho: se queres aprender alguma coisa de psicologia  lê os críticos da coisa. Mesmo os malucos. Lê Foucault, lê os movimentos anti-psiquiatria dos anos 70, lê o Szasz. Caso contrário ficas um papagaio.

Eu sei, quando estamos a aprender queremos tudo arrumadinho em quadros e tabelas. Catatuas seniores dão-nos um mundo  impecável de certezas, aquilo que na antropologia se chamava ciência de varanda ou de alpendre ( versão lusa). Depois falhamos e crescemos.

O Estado Novo, fascistóide e censor,  impediu que João dos Santos tivesse formado mais gente em Portugal. Ainda o conheci em miúdo,  de relance, num verão figueirense em casa do Carlos Amaral Dias. Um  velhote simpático de barbas brancas: este senhor é muito importante. Era  sim senhor. E foi sobretudo  a lê-lo bem mais tarde - os livros com João Sousa Monteiro e os trabalhos sobre patologias infantis - que desemburrei.  É uma pena que não disponibilizem às  novas gerações de psicólogos a curiosidade insaciável do João dos Santos: se não sabe por que é que pergunta?

 

02.02.22

No outro dia um tablóide chamava  à capa : os novos detectives electrónicos das infidelidades - você também pode ser um.  Os manuais de auto-ajuda expandiram-se mas mantêm o estalão da raça: podemos ser tudo o que não sabemos que se podia ser. Nada de novo, eles também fornecem a garagista auto-confiança e a divertida felicidade.

Podemos é  ir com Barthes - o fait divers é uma arte das massas - ou suspeitar de coisa mais concreta. Se formos com Barthes esta nova profissão é afinal velha O fait divers tem como função preservar a ambiguidade do racional e do irracional, do insondável e do inteligível. A infidelidade  electrónica é ela própria ambígua - por ex. o reencontro  exaustivo com um  antigo colega no facebook . O faça você mesmo não é para todos: nunca chegamos  a usar o espectacular  beberbequim  a laser e lá repousa ele no seu estojo brilhante.

Já se suspeitarmos de uma sugestão concreta, a coisa muda de figura. Começa pelo enunciado: a mesma tecnologia que  provoca a infidelidade pode descobri-la se você for eficiente. Isto leva-nos a uma conclusão surpreendente: dedique o tempo da sua relação  a provar que ela não funciona.

Ainda assim o osso da coisa é a especialização - investigar, provar, acusar. Ou seja, você pode ser cornudo mas um cornudo informado.

 

01.02.22

Carlos de Oliveira. À admiração por uma escrita  absolutamente limpa,  e à tristeza pelo esquecimento que hoje  lhe é dedicado, junto um pequeníssimo laço : a sua relação com meu pai que era seu médico e quase amigo. Uma indiscrição inocente:  o Carlos tinha medo de ir ao dentista e o meu pai, quando podia, ia com ele.

Num texto sobre todo "o escritor português marginalizado" - sofre biograficamente do complexo do iceberg: um terço visível, dois terços debaixo de água - , Carlos de Oliveira recorda,  uma  e outra vez, Afonso Duarte, o conimbricense de Ereira aposentado compulsivamente em 1932, da Escola Normal Primária ( resta-me a poesia, essa ninguém ma tira, dizia ele a Carlos  de Oliveira).

Noutro fala sobre a crise primordial do mundo moderno ( isto nos anos 60) e do receio de um apocalipse pouco espectacular, interno, fundado na tecnocracia - a habituação passiva ao mecanismo - e na  idolatria, a sufocante  obsessão dos objectos.

 

Seria o Carlos de Oliveira um tremendista? Não me cheira. O parágrafo citado é suave – apocalipse pouco espectacular, habituação passiva – e desiludido. Talvez apenas isso, desiludido. Acontece com a idade e eu, anónimo pouco cidadão, não escapo. O nosso mundo da velhice mais ou menos precoce nunca é o nosso mundo. É um planeta com habitantes parecidos mas costumes diferentes.

A sufocante obsessão dos objectos  já é diferente. O triunfo da vontade do consumidor -  a base do capitalismo, que nos conhece de ginjeira – não poderia desembocar noutro lado. Bem, talvez sempre tenha sido assim, só que dantes as massas não tinham os tais objectos. Coisas do capitalismo.

 

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