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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

31.03.22

Há histórias notáveis de resistência.  A.,  56anos, é uma  senhora  que viveu  a cuidar dos filhos e da fazenda ( horta), o marido era pedreiro.  Ele está sem trabalho há quatro anos, sem subsídio há quase dois, sem se poder mexer muito há um: L5 e L6  esmagadinhas  e as outras vértebras também  não se sentem bem. Dois filhos. Um na Alemanha  há muito tempo, o outro foi para lá agora  deixando cá  a mulher e um bebé.
A. é corada, seca de fastios, voz decidida. Que não, que não se deixa abater. É verdade que agora o antigo lema de Vale de Azevedo   - um escudo é um escudo - é para ser levado à letra. Não, não é de fome que falamos. De outras coisas: não pode arranjar os dentes, não pode ir ao privado operar-se ao pulso ( túnel cárpico), não compra roupa fez este último Natal um ano.
A. não se deixa abater porque já viveu no inferno. Tinha outro filho que morreu num acidente de mota com apenas dezoito anos. O que tem uma coisa a ver com a outra? Ela explica: Não passei por aquilo, e ainda passo Deus sabe, para me ir agora abaixo por causa de maladias.
A. tem uma rotina. Todos os dias vai a casa de uma vizinha  ( que é como quem diz de outro lugar a mais de  um quilómetro) de quase noventa anos. Lava-a, dá um jeito na casa,  reforça-lhe  a dieta que as senhoras do Centro deixam todos os dias. Pergunto-lhe, provocador,  o motivo. Olha-me com um desprezo de veludo: Fazia-lhe o mesmo a si.

29.03.22

A gente vai-se esquecendo. Não falo do défice cognitivo ( trabalho com isso todos os dias, aqui estou de férias), mas das pessoas. As grandes rupturas são espectaculares, ribombam e fazem eco, mas o deslace, lento e seguro , tem muito mais sumo. A distância, a idade, um outro engulho mal resolvido e la nave va. Sem zangas, apenas com silêncio. Ficam as tradicionais memórias dos  bons tempos bem arrumadinhas ao lado do amargor presente e estelífero da separação.

Um autor  esquecido, Miguel Rovisco, em Cobardias ( Ed Ática 1988) , avisa: a tarefa mais urgente de um adulto não está em recordar-se de todos os ensinamentos do passado, mas em descobrir o meio mais eficaz de esquecê-los. As situações de ruptura abrigam bem  o aviso de Rovisco, mas as do deslace também.
Conheci pessoas que   há quatro, seis, dez anos, sabiam o que recordar,  que  arquivaram as suas experiências e construiram uma base de referências e que se vêem hoje na posição de ter de esquecer tudo. Ao contrário  dessa grande lenda que é o stress pós-traumático ( lenda porque não queremos esquecer, queríamos  era que as coisas se tivessem passado de outro modo) , esta rasura não é causada  pela emoção. É uma escolha racional: o que aprendi não me serve agora de nada.

Isto aplica-se aos deslaces. O que aprendemos da relação anterior à decomposição não nos serve de nada no novo cenário. É outro planeta com uma física própria. Respira-se mal.

28.03.22

Isto vai ser o cabo do trabalhos. Uns vão dizer que Petrarca falava bem porque vivia com fidalgos indolentes e de barriga cheia. Outros atribuirão a este vosso escriba o estatuto de teórico. A primeira temos de a levar com um grão de sal, a segunda tomara que fosse verdade.

Petrarca considerava que a dor, física ou emocional,  só se tornava impossível de suportar  devido à fraqueza da alma. A virtude :  suportar  a dor nunca se  alcança por sorte mas pela  persistência. Ao contrário dos epicuristas. Petrarca pretende apenas combater a dor, diminuí-la,   não torná-la agradável. Socorre-se muitas vezes de exemplos de homens ( e deuses...) que o conseguiram para estabelecer como universal e ao alcance  de qualquer um conseguir vencer algumas batalhas. É aqui  que  entramos na arena.
Quando tenho alguém em sofrimento a quem conto histórias de doentes que padecem de males  piores ouço  o habitual "Com  o  mal dos outros posso eu bem". Se der exemplos  de pessoas que suportaram  a dor o que ouço é  o  que a Dor diz à Razão no manual de Petrarca:  " Não somos todos iguais".  Verdade. Não somos todos iguais, não existe socialismo da resistência ao contrário do que pensava o toscano.

Ao longo destes trinta anos poucas pistas consegui reunir, mas existe um matagal que me fornece rasto fresco: a velhice. Ela traz muita dor de todas as cores e feitios e os que melhor vejo resistir são os que aceitam a decadência. Parece estranho? Nem tanto.  Gostam de viver e por isso compreendem que há um preço a pagar. Lá entendem que o  balanço final enquanto estiverem vivos lhes é favorável. É uma arte de domínio dificílimo, só ao alcance dos que sabem que a vida é uma longa história de sofrimento.

 

 

27.03.22

Cabeça fria não é indiferença ao perigo, grace under pressure,  aplomb, panache, valentia. Cabeça fria dorme com   a condição estóica (1)  e o instinto de sobrevivência (2):
1) Significa aceitar o que nos acontece sem raiva ao mundo nem  auto-comiseração, mas também sem desistir. Cada dia é um ciclo inteiramente  novo ( daí a deriva popularucha do um dia de cada vez o  que se conduzir ao cadafalso não adianta muito), o passado é nosso, o presente está  a ser feito, o futuro estou-me nas tintas.
2) Queres ou não viver?  Se queres tens de viver bem. E para viver bem monta um cavalo decidido. E um cavalo precisa de um cavaleiro que lhe diga para onde ir, que saiba para onde ir. A hesitação,  a tremura ou  a intrepidez estouvada fazem-te cair  da sela em segundos.
Se a coragem idiota ou a obstinação irracional podem trazer-nos sarilhos, o excesso de cautela também.
O excesso  de cautela, para o que nos interessa  aqui, vem muitas vezes das personalidades  obsessivas, variação dubitativa. Ponderam, analisam, voltam  a ponderar e ficam imobilizadas. O problema é que os problemas não esperam por elas. Arranja-se assim um desencontro entre o mundo e elas.
O Duque de Medina-Sidónia ( o VII)  ficou na História  como alguém dado à paralisia. Protagonizou episódios caricatos na batalha naval com os ingleses ( um recuo e uma  longa viagem  de regresso de volta à Grã-Bretanha) e um outro em Cádiz. O Conde de Essex chegou, conquistou  a cidade, bateu nos gaditanos e  foi-se embora. Medina-Sidónia congelou e só depois apareceu. Cervantes dedicou-lhe  um trecho admirável de ironia:
Ido ya el Conde, sin ningún recelo,

Triunfando entró el Duque  de Medina.

24.03.22

O desgaste que as crises ( do subprime à Covid19 e agora com a guerra na Ucrânia) provocam é outra montanha para rolar a pedra infinitamente. Homero imortalizou a tarefa e todos conhecemos o mito. A resposta habitual é  a intensificação dos vazadouros: irritabilidade, bebida, tabaco, drogas,isolamento etc. Como é natural a resposta só vai aumentar o  peso da pedra que temos de rolar montanha acima.
Sílio Itálico, tido a certa altura como  sucessor de Virgílio,  mereceu de Plínio o Novo o seguinte comentário ( sobre  o Punica): maiore cura  quam ingenio. É isto - mais transpiração do que inspiração - (numa tradução libertina) que acontece quando   ficamos cegos ao esforço inútil que dispendemos em resposta a uma necessidade não satisfeita.
O que há  a fazer é primeiro uma confrontação honesta com a nossa cegueira. Somos nós que nos estamos a tramar ainda que este  seja  um  mundo de carrascos. Depois aplicar o esforço nas coisas que nos podem salvar. Quais? Todas as que nos tornem melhores: sermos generosos, solidários ou pelo menos uns filhos da mãe  impecáveis. É que ao contrário de Sísifo não fomos castigados pelos deuses mas pelos homens, por isso  nada existe que não possa ser feito ou suportado  de outra forma.

 

23.03.22

Pode ser  o amok ou o  spleen, mas podemos tentar encontrar um termo na nossa  língua Todo  o humano dado à contemplação e ao ócio (virtudes antigas) a reconhece. Eu também. É uma mistura de torpor com lassidão? Também ocorre na versão sonolenta. Em O Desbaste do Bosque Tolstoi anda de volta dela. Ora é o  soldado Velenchuk que sem ter bebido uma gota se sente atirado para o chão ( ela apoderou-se de mim)  e lá fica, ora é o protagonista Nikolai Fiodorovitch que dorme o sono especial e pesado que se tem nos momentos de preocupação perante o perigo. E há também o oficial que discorre sobre o Cáucaso. Os escritores é que a  sabem toda.
Seja como for é um estado defensivo. De hibernação. Como se quiséssemos fazer esperar  o mundo. Pobres tolos nem damos conta da caganifância. E é um zingarelho adequado aos dias de moinho que vivemos. Uns cansados da guerra como Velenchuk, outros  angustiados com o dia seguinte como Nikolai, vamos navegando nestas fatuitidades de  dramas lambidos.
Tenho atendido pessoas que sem saberem são personagens desta divagação  de Tolstoi.  Não é bem  depressão, não é bem sonolência, não é bem indiferença. Escolham vocês.

 

21.03.22

Existe  a clássica ( entre Cila e Caríbdis)  e as da  língua inglesa, menos dramáticas e que não envolvem espadas. Por exemplo: between the rock and the hard place.

O tempo e resistência são as categorias maiores. Viradas para a sobrevivência à perda, dediquei-lhes um livrito ( Educação para a morte, Bertrand 2008) que me saiu do pêlo literalmente, mas isso são outros matos. São categorias gerais. Uma ruptura amorosa, a bancarrota, uma encomenda do diabo ao pâncreas, enfim, todo o mato de erva-de-elefante acoita testes à forma como as combinamos.

No outro dia  dizia a uma mulher ocupada com um teste de peso que quanto mais difícil é a exigência mais possibilidades temos de cortar orelhas  e sair em ombros. Naturalmente achou-me tolo. Mais ou menos. O que lhe quis transmitir-lhe é que quanto pior é o desafio mais possibilidades temos de dar o máximo.
O instinto de sobrevivência é uma droga poderosa. Se já estiveram em situações destas terão dado  conta que tudo parece acontecer em câmara lenta.  É como se quiséssemos apreender tudo, retalhar as fracções de tempo, cavar a trincheira com esmero para não nos escapar nenhuma alternativa. Por outro lado, diante de um ataque leonino o Péricles dentro da nossa  cabeça mobiliza o povo todo.
Mesmo que sejas dado à melancolia fatalista, se estiveres entre a espada e a parede há sempre a esperança ( deixem-me brincar um bocadito)  que ganhes tino: se queres continuar a viver a bela melancolia apoia-te na parede e salta sobre a espada.

 

 

20.03.22

O nome técnico é Transtorno Afectivo Sazonal ( TAS). O rótulo é todo um programa. O transtorno e a perturbação infectaram  a nosografia psi e  o afectivo vai de arrasto à sardinha. Enfim,  o povo e os médicos do povo  sempre falaram no cair da folha e no rebentar da folha. Poupemo-nos à descrição  perfunctória e avancemos: Sentes a mudança de estação?
Pertenço ao grupo dos que  reagem mal à mudança. Não pela mudança em si mas pelo processo. Por exemplo o período que antecedia  o início das aulas dos miúdos. Ou aquelas primaveras bizarras em que a noite ainda não chegou  às sete da tarde ( ou da noite?), mas chove e faz frio. Como eu muitas pessoas sentem o desconforto da passagem de ciclo... porque é uma  passagem.
É claro que o TAS, o verdadeiro, o da Bayer, bate mais forte. Seja como for o princípio é o mesmo.Talvez haja algo de natural nisto. Sentimos que o  ambiente muda  sem sermos ouvidos e que temos de nos adaptar. Confiro na clínica  que aqueles que também já passaram por situações terríveis e inesperadas são mais susceptíveis de sofrer da rebentação ligeira ou pesada do TAS. Não é necessário ser um psi para compreender. Se até as grandes mudanças anunciadas são duras ( divórcios, despedimento etc), as inesperadas e brutais são um gancho de direita; até porque estávamos com a guarda baixa, distraídos com a vida.
Como sempre a fórmula é presentificar. Projectar  para o  dia que ainda corre coisas que dependam da nossa vontade. Coisas boas ou coisas difíceis que tenham de ser feitas. O apaziguamento decorre da ilusão de que tudo muda, devagar, e  que temos algum controlo.

18.03.22

Podíamos ir aos tempos do Independente de Paulo Portas e do MEC, mas vamos a outra loja.

Os espíritos como o meu não foram feitos para desenvolver os temas mas unicamente para inventar os títulos. Esta sentença de Alfonso Reyes ( Tres Diálogos, 1909) define com raça o funcionamento das mentes criativas mas também das práticas. É estranho, eu sei, a combinação nem sempre  existe. Há personalidades práticas nada criativas e, claro, gente criativa muito pouco prática. O que as une é  a capacidade de nomear.
Muitas sementes.  Titular uma acção, uma morte, um desejo, uma traição, coisas reais das vidas das pessoas. Não serve para nada?  Serve, serve...
Inventar títulos. Reparem. Reyes escolhe bem as palavras. Significa que criamos uma história dentro da história e titulamo-la. Umas partilhas azedas, uns e-mails  dúbios, uma quebra de confiança. Inventamos o título e vivemos  com ele. Este poder de nomear o real é prático porque nos dispensa de desenvolver a trama. Um exemplo: A mulher queixa-se diante do café esquecido - O que ele queria era uma tipa mais nova. O que depois a amiga difunde: O Renato fugiu com uma bielorussa.

A criatividade é menos  neurótica-reprimida. Também inventa títulos mas na linha maníaca: em vez de tentar dar respostas para os problemas inventa perguntas sobre os problemas. Outro exemplo? O do rapaz que olha para os pais-polícias e murmura: Por que é que não vivem a vida deles?

15.03.22

Do fracasso. Esquerda, direita, volver, marche. Como se digere o fracasso? Há uma ordem unida psicológica?
Preocupo-me mais quando são personalidades ciclotímicas (acentuadas variações de humor sem chegar à bipolaridade) ou quando existe uma fraqueza associada: um problema de saúde, uma perda recente etc. Isto porque vejo o fracasso como uma falange que nos sitia. A guerra é inevitável, a logística essencial.
Quando falhamos perdemos meios e territórios. A primeira tarefa é incluir o fracasso na ordem natural das coisas. A segunda é recuperar o moral. Há gente que não consegue a primeira ( não aceita), há gente que não sabe fazer a segunda.

Aceitar o fracasso não significa aceitar o que fizemos para fracassar. Ciclovia: tudo considerado - as nossas acções, as dos outros, o ambiente-, o resultado não podia ser outro. A inteligência não serve só para tirar boas notas ou defender teses académicas. Acima de tudo a inteligência é uma ferramenta para compreender.
Então enfiemos as luvas e subamos ao ringue. Recuperar é recuar. Entender que como estamos  e decidimos não somos suficientemente fortes. Não gostam do ringue, tomem a navegação. Recuar para o porto que conhecemos bem ( Séneca) , restaurar o cordame e os instrumentos de orientação. Visitar amores, comer, beber e dormir. Sonhar.

 

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