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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

13.03.22

O António Damásio disse uma vez que o velho princípio whatever works baby é um bom princípio quando se ajudam pessoas. A fé, a crença religiosa, pode ser um factor?
Ter fé num tratamento  é bom, sim, mas não me parece o principal. Ao fim de todos estes  anos e vendo muita gente que por regra nunca entraria no gabinete de um psicoterapeuta ( lavradores, gaspiadeiras, pastores, muitos velhos),  a dimensão religiosa mais importante parece-me outra.
O desespero, um dos alvos desse enorme terapeuta ( até no sentido literal) que foi Cristo : Somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos ( 2 Corintíos 4:8-9). Não sou crente - ou melhor  acredito em todas as religiões - mas esta impertinência dos verdadeiros crentes é admirável e estelífera.
No Educação para a Morte ( Bertrand 2008) conto a história   de uma senhora de quase oitenta anos que perdeu a filha única, quarentona e solteira.  Era uma  mulher religiosa, falámos muito  sobre a esperança e fé durante a quimioterapia. Na primera sessão depois da morte da filha perguntei-lhe em que pé ficaram as coisas com Deus. Respondeu-me: No mesmo de sempre. Sempre acreditei e durante estes meses terríveis nunca me deixou sozinha.
O pedantismo e os complexos mal resolvidos podem miar,  mas  é  aqui que, da minha experiência ( este assunto tem de ser abordado assim), as pessoas com fé vão buscar um um ramo de cheiros ao deserto.

 

 

11.03.22

 

Kairologia. Usa-se no futebol, na descrição dos debates políticos, em todo o lado em que acontece o que devia acontecer. Dionísio (de Helicarnasso) achava que não. Ninguém conseguiu  definir a arte da oportunidade. Traduzindo em passe vite a ideia de Dionísio:  dependendo a arte do kairos  de uma situação determinada, julgada pelos olhos de quem a vê e ocorrendo num instante preciso que por sua vez  é o produto de momentos anteriores e  coevos, é impossível definir a arte. A altura certa para dizer a verdade, o momento  benigno para abandonarmos, o segundo preciso em que desistimos. Arrisco contrariar Dionísio ( espero que no instante certo): domina a arte da oportunidade quem duvida do futuro.

O que nos leva de novo ao tempo irreparável. Lembro-me de uma mulher. Trintona, engraçada, amarrada a um marido desleixado,  um café de aldeia em comum, dois filhos.  Enamorou-se de um tipo que lavava os dentes e tinha facebook. Discutimos a situação várias vezes, a coisa arrastou-se  durante  um ano. Um dia entra-me pelo gabinete com cara de quem foi ao pote das bolachas. O marido morrera de repente. O problema: agora não conseguia juntar-se com o outro. Remorso, culpa, fosse o que fosse.

Lembro-me que estiquei as pernas, olhei para  a janela do gabinete e resumi:  Como se diz aqui em Coimbra: agora  é tarde, Inês é morta.

08.03.22

"A  sociedade humana  culmina na fundação das  cidades, a vida sedentária  é o término e a corrupção da civilização;  esta, consequência natural da cooperação,  constitui um mal em si mesmo e é, no processo de toda  a evolução social, o princípio que mata (...). O ciclo de uma sociedade acaba; nascida no campo, frutifica  através da conquista de outros grupos  que reúne sob a sua soberania e morre na cidade fundada como residencia do poder político.

(...) Os semi-selvagens - os bárbaros  nómadas - são os únicos homens dotados de condições para conquistar e dominar. Na cidade, no Estado já constituído,  perdeu-se a coragem, porque se vive com excesso de segurança". (  Muqaddimah , Prolegómanos, c. 1373, de  Ibn Kaldhoun, aka bin Khaldun, Ibn Jaldún,  etc)

A última frase é terrível, não é? O excesso de segurança aniquila a coragem? Nas relações amorosas também? Sempre que releio esta passagem lembro-me de A Toca do Kafka.

07.03.22

Os dois ( o tempo e o jogo)  na Ucrânia lembram outros. Da tristeza, do desperdício e da destruição. Desta vez ainda mais cruéis porque parece que recuámos com Putin no tempo e no jogo mortal. E porque há gente a lutar  com uma coragem notável.

O Great Game  se visto no mapa é facilmente perceptível: os britânicos vindos do sudeste, os russos vindos do noroeste. Encontraram-se no Afeganistão ao longo de grande parte do século XIX e jogaram o jogo do conde Nesselrode e do capitão Connoly. Não sei o suficiente sobre as intenções russas desse tempo, mas o jogo britânico parecia claro: prolongar a esfera de influência a partir da Índia, defender-se da cobiça russa. Em 1836, estava Mohammad Khan ocupado a tentar reunificar o antigo projecto do grande Afeganistão de Durrani, quando os ingleses entram pelo país adentro. Esta terra de ópio é também terra de muitas coincidências:

A ocupação britânica do Afeganistão é mitigada pela batalha de Maiwand ( dizia-se nos meios militares ingleses que não se pode combater na Ásia Central a partir de planos traçados à sombra de uma veranda indiana), mas a Inglaterra continuará a deter um droit de regard sobre o país. Muitas tribos são separadas com a delimitação da fronteira Durand ( 1893) e o Pamir é retirado aos afegãos; a confusão permanecerá por muito tempo

Ontem como hoje os contadini não se interessam pela guerra. Por nenhuma guerra. Carlo Levi no seu "Cristo si è fermato a Eboli" descreve a resignação desgraçada do popolo italiano, o dos campos, pela campanha fascista da Abíssinia promovida por Mussolini: "Pazienza! Morire sopra un'amba abissina non è poi molto peggio che morire di malaria nel proprio campo, sulla la riva del Sauro.É a velha história: para valer a pena ir morrer , é preciso ter algo pelo qual valha a pena lutar.

05.03.22

A língua de pau psicológica diz que a má consciência  é uma autopunição, uma interiorização do impulso agressivo dirigido ao self. Fez tanto caminho que já gastou as rodas. Funda-se, de Nietzsche ao Freud inicial ( o tardio é outra conversa) , na ideia do homem maravilhoso se livre  da repressão social, ou seja, do cristianismo. Os budistas falavam de dez males terríveis a evitar, entre eles o matar, o roubar e o sexo  impróprio; tudo  muito antes de Cristo se ter empinado na cruz. Deixemos essa conversa  de  descerebrados.

A má consciência  tem um crédito terapêutico. Notei, ao longo destes muitos  anos de clínica, que faz as pessoas melhores. Gente que placidamente ignorava  os efeitos das suas acções nos outros torna-se capaz de os sentir como se os tivesse sofrido. Isto  transforma-os finalmente em humanos: animais sem sossego.

 

Já se as  pessoas querem limpar a consciência para isso não precisam de mim. Têm  a psicanálise: você só foi para cama com esse seu antigo colega  para corresponder a uma fantasia sexual reprimida com o seu pai. Uma  consciência limpa é sinal de fraca memória, dizia o Mark Twain. Quero-a suja e gosto que as pessoas conservem a memória, é útil na terapia. É uma ferramenta essencial para combater a vitimização e o delírio de  grandeza, coisas que perturbam a autonomia do sujeito.

A vida é suja, a consciência  também. Aceitá-la como se aceita a perda ou o abandono é um caminho do bosque.

 

 

 

03.03.22

Em muitas  línguas, portanto, em muitas culturas, a frieza tem má fama. Dizer-se de alguém que é frio ou que actuou ou falou com frieza é passar um atestado de desumanidade.  Pode não ser assim. É melhor  o teu escravo ser mau do que tu seres destemperado é uma das regras  da casa da ataraxia. Substitua-se o escravo da muito peculiar ( e curta) democracia grega por empregado, mulher, vizinho, irmão, o que se quiser.

A frieza não tem  de remeter para  a indiferença. Pode ser  a capacidade  de autocontenção, de pensar duas vezes antes de falar ou actuar. Pode sobretudo  ser  uma frequência baixa ainda que imperceptível aos ouvidos ansiosos. Assim sendo temos aqui  uma forma de intimidade: disciplinando as paixões, reservando-as para quem as merece.

Os moralistas antigos não exportavam o seu exemplo pessoal, traçavam linhas mais largas. Caio Rufo, um estóico pouco conhecido ( só ficaram fragmentos), entendia que os deuses  puseram umas coisas sob nosso controlo e outras não.  Sob nosso controlo, dizia Rufo ( fragmento 38),  os deuses puseram  a capacidade de usarmos a razão para sermos justos, bons e respeitadores. Fora  do nosso controlo os deuses deixaram tudo o resto. Tudo o resto que não controlamos deixa-nos  a possibilidade de confiar no universo e ceder-lhe o que ele pedir: os nossos filhos, o nosso país, o nosso corpo. Isto não é para todos, mas sempre é melhor do que o moralismo revolucionário y  beato.

 

 

 

 

01.03.22

O tempo irreparável, belíssima e famosa  famosa passagem das Górgicas.

À medida que envelhecemos, todos nos queixamos: o tempo passa demasiado depressa. Parece  irreal porque o tempo medido é sempre igual. Não é nada estúpido porque por exemplo o tempo de uma aflição é muito mais longo do que um bom jogo do Benfica. Então ficamos aflitos porque sentimos que o jogo está a acabar e não há prolongamento? Talvez, mas é uma ilusão: o tempo irreparável significa que é uma ilusão o nosso domínio sobre ele.

O nosso envelhecimento  reconhece duas categorias temporais: o que já gastámos e o pouco que nos falta. Um geriatra  espanhol costuma dizer que só ficamos velhos quando trocamos as ilusões pelas recordações. Se virem bem as crianças não ligam ao passado. Pois claro, têm muito para viver y ilusionar.

O osso é este: os avarentos defendem o resultado, os que envelhecem  bem disputam o jogo até ao árbitro apitar.

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