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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

11.05.22

O título deste textito é um trompe - l'oeil.

Os histéricos,  sobretudo os ultra-narcisistas, parecem muito emocionais, mas são os filhos da mãe mais frios e racionais que conheço. Inventam dramas, farsas, vitimizam-se, choram baba e ranho, sugam os outros até que todos à sua volta sejam tão miseráveis como eles. Por outro lado,  pessoas  que tomam decisões ponderadas dão ares de iceberg: são os racionais, os frios. Pois é:  muitas vezes notei que essa ponderação levou em conta os interesses e   desejos de terceiros.

Temos então gente racional, fria nas decisões, mas que em muitas ocasiões é gente que dá, que se dá, que entrega o muito ou o pouco que tem ( tempo, dinheiro, paz, silêncio). Não têm  de ser  humanos  bonzinhos. Pressentem é  no laço humano mais do que o pasto para  a autosatisfação permanente, porque  captam uma lei de bronze: se os outros estiverem melhor, eu fico melhor. Então digam lá: foi com o coração ou com a cabeça?

10.05.22

 

Violência doméstica my ass. O que se passa nas casas portuguesas é violência pura e simples. Algum zé-das véstias se lembraria de falar em violação doméstica ou assassínio doméstico? 

Nos casos portugueses, segundo o pequeno arquivo informal que tenho recolhido, o motivo  mais vezes referido  para justificar o assassínio da mulher é  a recusa da separação ou do divórcio. Como todos sabemos  isto é falso.  Na esmagadora maioria desses casos  a violência foi prévia à separação. Numa lógica intratável o assassínio  é  a última e coerente etapa.
A mudança ainda vai a meio caminho. Pergunto-lhes muitas vezes por que motivo não reagiram à primeira bofetada. Respondem baixando o olhar que foi só uma bofetada. É o que se chama reforço positivo: bato-te mas depois abres as pernas.
Ora a violência inaugural é isso mesmo: uma inauguração. No cérebro deles começa a formar-se uma perigosa associação. Podem bater-lhes  porque sim ( um juizo hegeliano da força como critério de correcção) e tudo fica na mesma. É preciso vegetar nas teorias pacóvias da perversa influência social sobre a bondade humana ( não culpar Rousseau que apenas disse que o homem  tinha a capacidade de se tornar melhor se erigisse melhores  sociedades) para não entender isto.
Pior ainda: quanto mais lhe batem menos gostam delas. Não se deixem enganar pelo "não sei viver sem ti" Leiam antes: "só sei viver se te puder fazer a ti o que não posso fazer à colega de trabalho das pernas boas".

 

 

 

 

09.05.22

O que faz a distância às relações? Não faço ideia, mas a proximidade pode matar.

À emigração antiga, desde a muito antiga à de Paris de França, sucedeu outra: a tecnológica.  Conheço casais que agora comunicam mais na rede do que ao vivo. Mudou muito? Nem por isso, as coisas de que falamos são as mesmas.

No gabinete não digo isto às pessoas, mas não acredito em relações  à distância. A longa separação é para os lutos e para as zangas, o que ilustra bem a sua função. Sim, às vezes vem-me à cabeça que a distância filtra a relação: se já estava em declínio, mais se afunda. Ainda assim mantenho que ela não faz bem à tosse.

Temos então uma nova espécie. As pessoas estão fisicamente próximas ou distantes, não importa, mas a relação ( ou parte dela) emigrou para a rede tecnológica. Se não mudou o que se comunica ( os miúdos, as contas, as doenças da sogra), mudou o que não se comunica. A distância cria uma visão menos enevoada do papel do outro mas sobretudo da própria  relação. O que não se comunica é o que entendemos não ter dignidade para ser posto na mala diplomática. As relações  correm o risco de assentar na troca de informação ou nas flores secas ( adeus beijnho, adeus adoro-te, adeus até amanhã).

O pathos da relação - a tensão, o toque, o olhar - é espremido na bimby electrónica. Sai comestível mas  sem graça.

 

 

08.05.22

Crisipo, no Therapeutikos,  Crantor e Séneca  estabeleceram a psicoterapia ( as consolações) num eixo estóico-epicurista apelando à razão e a normas filosóficas que transcendem a existência individual. Petrarca veio depois e veio muito bem.  Não sou um erudito nem sequer um iniciado. Recorro às  formulações estóicas e epicuristas como quem vai ao mercado. Cada um dá o que pode e amanhã começa outro ciclo.

Scio a praeceptis incipere omnis qui monere aliquem uolunt, in exemplis desinere. Diz ele que às vezes se pode inverter a ordem - começar pelos exemplos e acabar nas recomendações - porque  é preciso adaptarmo-nos  a cada caso particular.  Marcia  perde o filho Séneca  escolhe os exemplos de Octávia e de Lívia: também elas sobreviventes ao luto. O objectivo terapêutico do estóico é opor a Márcia exemplos  de resistência para que ela não fique como o capitão do navio   que, no meio da tempestade,  desiste de luta contra as vagas e deixa que as velas se rasguem à ventania.

Um caso que acompanhei foi o de uma senhora que perdeu um dos dois filhos. Morreu adulto num acidente. Já nada lhe interessava , só queria  ir ter com ele. É uma mulher simples ( sem instrução como dizia o Soares sobre o Eusébio) que compreendeu isto que eu lhe disse: Você não é só uma mãe de um morto. Também é mãe de um vivo, é mulher de um homem, irmã, tia, prima, amiga. A sua dor é de todos. Aceitou e recuperou, que é como quem diz, vive. Amputada, para se salvar  da gangrena, mas vive.

 

04.05.22

Um dos piores  indicadores da situação de alguém é o estado da casa. Não me refiro às paredes ou à conservação do soalho. A nossa casa é, tem de  ser, o nosso refúgio. Já conhecem refrão estóico do amigo Marco Aurélio:  nunca tem bom vento quem não conhece bem o seu porto. Chegar depois de um dia de cão  a um sítio onde em regra  nos envolvemos em gritaria virulenta  ou em desprezo calculado é trilhar caminho  impérvio. 

Um antropólogo francês em moda nos anos 90, Marc Augé,  falava da retórica familiar: a nossa casa é onde não temos de dar justificações. Por ex, podemos andar de boxers ( sirvo já todos os géneros incluindo o  fluido). Isto é um dos lados. O outro é o do reconhecimento. Vivemos com conhece os nossos ritmos e vice-versa. Isto devia  proporcionar uma harmonia razoável. 
Bem sei que harmonia familiar é uma expressão que os neuróticos  mal-resolvidos e mal-amados  têm diabolizado desde os anos  60 a pretexto da liberdade contra a opressão familiar-burguesa. Como o resultado do alívio  de tamanha sarabanda foi um espectacular aumento do consumo de ansiolíticos e antidepressivos, incluindo já os dados anteriores à pandemia, concluo que tanto a asfixiante família tradicional ( que  a havia...) como a vesânia psi são más cidadelas.

Do que falo aqui é de uma coisa simples e inscrita numa ordem muito antiga: somamos muito mais do que somos individualmente.

02.05.22

O ciúme de Dejanira  é sexual, mas os ciúmes mais tóxicos que conheço são de outra natureza. A matriz é sempre um pensamento maníaco e insolente produzido por um pensador desiludido e mal amado. Dejanira acaba por dar razão a esta observação que qualquer  interesssado na  natureza humana pode fazer. Utilizo a  tradução ( excelente como sempre) de Maria José Fialho.

Para quem não conhece: Dejanira recolhe do peito de  Nesso, o Centauro,  o sangue provocado pela lança de Héracles. O Centauro tinha-a apalpado e o filho de Zeus não gostou. Dejanira aplica esse sangue numa túnica porque o moribundo prometeu-lhe que ela ficaria da posse de um encantamento especial: Héracles nunca mais voltaria  a olhar para outra mulher.  Bem, o tempo passa e Héracles trai e vola a trair e Dejanira resolve usar o filtro mágico. A coisa corre mal e o amado agonia em vez se tornar fiel . Dejanira mata-se e Hilo atira o corpo do pai para a pira apaziguando-lhe  o sofrimento.
O estásimo terceiro revela Cípris, a deusa que motiva o apetite de Dejanira,  como uma deusa do engano e da destruição. Quem está familiarizado com  as tragédias gregas sabe que os deuses desempenham um papel de ignição das forças e fraquezas humanas. Dito por mim, portanto, por um pobre leigo:  a eles tudo é permitido, os humanos é que os interpretam mal. Dejanira  foi conquistada por Héracles com a ajuda dos deuses e ilude-se desde aí. A sua soberba será por eles castigada.

Na nossa actual vidinha contentinha, inchados de importância  técnica e desdenhando tudo o que não se possa ser impingido pela publicidade ou fabricado,  As Traquínias parece um texto  tolo e deslocado. Pensa outra vez quando leres uma história banal de ciúme  e  morte.

01.05.22

A ansiedade de base pode  sobreviver em personalidades que desconhecem ataques de pânico, rituais compulsivos  e restante parafernália da agitação. É necessário despsicologizar e despsicanalizar. Gore Vidal disse  a propósito das centenas de psiquiatras e psicólogos - amadores, de ocasião e profissionais - que chegaram a analisar  o puré de batata que Nixon recusava na infância: Não inflijam esse esterco de cavalo freudiano ao Nixon, ao meu Nixon. Muitas vezes a ansiedade de base é um sintoma de saúde mental. Tenho em consulta gente que perdeu o emprego, tem um filho preguiçoso ou  cuida de pais demenciados. A ansiedade subterrânea  é a  reacção de uma personalidade normal a factores ambientais  e relacionais agressivos.

Ainda assim o treino é necessário. Uma estratégia razoável é valorizar outros factores negativos. Parece maluqueira? Quando estamos  preocupadíssimos com uma avaria no automóvel deixamos  de pensar nela se  um filho adoece. Isto lembra, já que falámos no Nixon, a primeira regra de Chotiner ( seu conselheiro de campanha) : as pessoas não votam em alguém, votam contra alguém. Da mesma forma a nossa ansiedade  natural pode ser atenuada se valorizarmos outras preocupações.

Imagino a reacção do leitor: então substituimos uma dor de cabeça por outra? Sim. O objectivo não é impingir ( diria Vidal) pensamento positivo e outras balelas. O objectivo é anular a excessiva atenção que um factor agressivo nos está a captar. E de caminho até percebemos, com mando  y temple, que as coisas não são assim tão complicadas.

 

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