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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

30.06.22

Isto há-de ser desenvolvido num zingarelho para o qual me convidaram, por enquanto treino aqui. Estou a envelhecer por isso presto mais atenção aos velhos da clínica. O  consenso geral: envelhecer é horrível. Muletas, andarilho, memória fraca, dependência, corpo podre. Sim senhor, mas tem vantagens ( suspendam as pedradas).

Uma e  talvez a mais importante: de todas as coisas más que nos podem acontecer é a segunda  mais previsível. Na versão optimista, claro, que exclui acidentes na estrada, afogamentos e maladias avulsas. Ou seja podemos preparar-nos. Imagino um daqueles chavalos com que treino a armar o gancho da direita e eu a ver o cotovelo levantar-se, o ângulo recto perfeito com o ombro, o punho a descrever o arco fechado  e seco. Em vez de cair zonzo e perder mais um pré-molar executo e preparo a esquiva na maior e a palitar os dentes. Era bom era. Adiante. Da velhice não nos podemos esquivar mas podemos lançar uma âncora da saúde mental: aceitar.

Aceitar uma separação, uma morte ou  uma frustração de dez toneladas é um dos maiores testes à nossa massa mãe. Não significa desistência ou resignação, é passar a funcionar mesmo com uma derrota. E até,  imaginem, sentir um ou outro prazer no meio dos escombros.

O passado, as fotografias, o tempo irreparável...isso fica para o tal zingarelho. Um dia destes quando me sentir demasiado bem disposto chego a roupa ao pêlo (sem AO) à insolência.

28.06.22

Corre  por aí algures mais uma feira ( ou festival) do sexo organizada pela minha colega Marta Crawford. Ela tem muitos vídeos. Há um com o título: Segredos do sexo feliz. É enternecedor e digno de admiração o esforço desta especialista em sexo e devemos ouvir com atenção os seus ensinamentos. Também fiz uma perninha na área.

Quando tinha boxers tive um macho tigrado espectacular. Enorme, stop em ângulo recto, cabeça majestosa. Era muito requisitado, até uma cadela do José Cid esteve no meu jardim. Acontece que o Bóris era um bocadito, digamos, precipitado e distraído. Vai daí eu tinha de o apontar. Quando ele montava  as cadelas lá estava eu a certificar-me de que o instrumento dele acertava no sítio certo e durante o tempo necessário. Nunca fui filmado nessas andanças, mas albergo a leve impressão de que fazia uma figura entre o Benny Hill e um ginecologista charrado.

Claro está que se tratava de cães, seres irracionais ( embora tenha tido uma cadela com um QI superior ao meu). Os humanos têm a sorte de ter a Marta Crawford.

 

 

21.06.22

Realização profissional é uma das mais espectaculares operações de falsa bandeira dos psicólogos e jagodes associados.  Seja nas sociedades de subsistência ou nas de mercado voraz,  o trabalho é para pagar contas, para sobreviver.  Podes gostar do que fazes? Por vezes. Se me pagassem para jogar  Football Manager não digo que não gostasse. De vez em quando. O osso é outro: tudo o que fazemos por necessidade durante longas horas por dia é obrigação. Promover realização profissional no WC era capaz de não lembrar nem ao Cesariny a menos que ele tivesse escrito sobre obstipação.

Conheci um homem que toda  a vida serrou madeira. Quarenta anos  a serrar madeira. Teve filhos, cães,  caçou, enrolou-se com uma vizinha,  assou leitões,  pagou em moeda de costela a  um GNR que o chateava, sobreviveu a um cancro. Entretíamos  conversas animadas no gabinete.

Vai ter com os idiotas que te convenceram de que um homem se realiza a serrrar madeira: pode ser que te dêem valor.

20.06.22

Não há mal nenhum em ter esperança. Um tipo vai registar o totoloto e espera a sorte, mas o  que os desesperados nos ensinam  é que a esperança é um acidente . Primo Levi em entrevista à Germaine Greer ( The Literary Review , Nov. 1985): Cada sobrevivente representa  uma excepção, um milagre, um ser com um destino particular.

Esta história só a conto porque existe um processo clínico com ela e uma testemunha ( o meu irmão neurologista que trabalha comigo):

Quando a conheci era uma  lavradora reformada de 70 e muitos. Em nova perdeu  dois filhos de uma vez. O marido tinha comprado uma caçadeira e deixou-a encostada a um canto do logradouro, com uma caixa de cartuchos ao lado. Os dois miúdos pequenos brincavam sentados. Um irmão da senhora, na altura ainda gaiato,   quis chumbos para  a fisga e abriu um par de cartuchos.  Feito o trabalho fumou um cigarro, saiu e atirou a beata sem olhar. Os miúdos moreram assados como leitões no meio da palha e da carqueja.  Passados uns anos outro filho meteu-se na droga e acabou preso no Linhó. Mais uma volta da ampulheta e a senhora  lerpou  duas mastectomias: radical à esquerda, parcial à direita. Cinco anos volvidos o marido  sofreu um AVC e acamou em casa; sofreu outro e morreu no mês anterior a ela vir à consulta. A lavradora queria viver, queria "tratamento  para a depressão".

 

11.06.22

Acredito  no sobrenatural, é uma explicação. Ouço isto vezes sem conta. No sânscrito smerah ( sorrir) e no latim mirare ( olhar esgazeado  com admiração a obra de Deus). Sim, também tenciono ir à Catedral  para o ano mirar o  Benfica campeão. E sorrir. Adiante.

Casanova foge para Munique  na companhia do padre  Balbi ( que fazia amor desastradamente  com todas as criadas das várias estalagens em que ficavam)  e encontra a condessa Coronini, uma conterrânea ( veneziana) de 71 anos. Esta promete dar ao príncipe  Eleitor  uma palavra em favor  de Casanova ( sabe-se lá porquê...)  e lá vai ele reunir-se com o confessor  do Eleitor, um jesuíta.  O padre conta-lhe que a cidade está envolvida num milagre: o corpo da imperatriz, ainda em exposição pública, mantém os pés quentes. Casanova foi confirmar. Sim, os pés continuavam quentes porque virados para  uma lamparina acesa.

O  verdadeiro milagre é sempre  a crença  das gentes.

06.06.22

O António Damásio disse uma vez que o velho princípio whatever works, baby é um bom princípio quando se ajuda pessoas. A fé, a crença religiosa, pode ser um factor quando se ajuda pessoas? Claro. 
Ter fé num tratamento ( químico ou de psicoterapia) é bom mas não me parece que encerre o tema. Ao fim de todos estes  anos e vendo muita gente que por regra nunca entraria no gabinete de um psicoterapeuta ( lavradores, gaspiadeiras, pastores, muitos velhos),  a dimensão religiosa mais importante parece-me outra.
O desespero, um dos alvos do Cristo enorme terapeuta que depois se desencaminhou para  a política  : Somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos ( 2 Corintos4:8-9).
No Educação para  a morte ( Bertrand 2007) conto a história de uma senhora de quase oitenta anos que perdeu a filha única, quarentona e solteira.  Era uma  mulher religiosa, falámos muito  sobre a esperança e fé durante a quimioterapia da filha.  Na primera sessão depois da morte perguntei-lhe em que pé ficaram as coisas com Deus. Respondeu-me: No mesmo de sempre. Sempre acreditei e durante estes meses terríveis nunca me deixou sozinha.
O pedantismo e os complexos mal resolvidos podem miar,  mas  é  aqui que as pessoas com fé vão buscar um um ramo de cheiros ao deserto. E isto vale tanto como o último remédio do mercado.

05.06.22

No final dos anos 20, Beryl Markham foi a primeira mulher  a usar a avioneta em exploração do mato ( Tanzânia)  para fins de safaris.  Perguntaram-lhe  por que se envolveu com  o barão Bror Blixen ( sim, o que foi  casado com a Karen Blixen,  née Dinesen, do África Minha). A resposta dela : We were alone in  elephant country...drinking champagne.

Um tipo tenta imaginar o equivalente em 2022 em Castanheira de Pera. Um tipo não precisa, tem essas história no gabinete. Lembro-me de uma mulher, pelos trinta e tais, solteira. Já  tinha tido  a sua vara de desilusões, uma delas com um homem casado e com dois filhos pequenos.

Passava  a vida ao balcão de uma pequena empresa de materiais de construção. Um vendedor, casado, claro, mais velho, com uma barriguinha falante e promessas de rouxinol fazia-lhe muitas vezes companhia. Bebericavam um café automático em copitos de plástico e riam muito. A mulher lá se envolveu com o gabiru, nutriu ilusões e despenhou-se passados uns meses. Quando lhe perguntei por que tinha caído na conversa respondeu: Estávamos muitas vezes sozinhos naquele ermo... e o café sabia-me tão bem.

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