20.06.22
Não há mal nenhum em ter esperança. Um tipo vai registar o totoloto e espera a sorte, mas o que os desesperados nos ensinam é que a esperança é um acidente . Primo Levi em entrevista à Germaine Greer ( The Literary Review , Nov. 1985): Cada sobrevivente representa uma excepção, um milagre, um ser com um destino particular.
Esta história só a conto porque existe um processo clínico com ela e uma testemunha ( o meu irmão neurologista que trabalha comigo):
Quando a conheci era uma lavradora reformada de 70 e muitos. Em nova perdeu dois filhos de uma vez. O marido tinha comprado uma caçadeira e deixou-a encostada a um canto do logradouro, com uma caixa de cartuchos ao lado. Os dois miúdos pequenos brincavam sentados. Um irmão da senhora, na altura ainda gaiato, quis chumbos para a fisga e abriu um par de cartuchos. Feito o trabalho fumou um cigarro, saiu e atirou a beata sem olhar. Os miúdos moreram assados como leitões no meio da palha e da carqueja. Passados uns anos outro filho meteu-se na droga e acabou preso no Linhó. Mais uma volta da ampulheta e a senhora lerpou duas mastectomias: radical à esquerda, parcial à direita. Cinco anos volvidos o marido sofreu um AVC e acamou em casa; sofreu outro e morreu no mês anterior a ela vir à consulta. A lavradora queria viver, queria "tratamento para a depressão".