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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

19.07.22

Eu era meio-figueirense. O meu pai tinha casas na Figueira da Foz. Eu era desterrado quase quase quatro meses. Na Páscoa, fins de semana etc idem. Tinha onze-doze anos e arrancava numa bicla sem matrícula nem capacete pela estrada fora,  passava a velha ponte da Gala e ia fingir que pescava robaletes para os lados das antigas salinas. Futebol era de manhã à noite. Os banhos de mar com bandeira vermelha eram os mais apetecíveis: Os nadadores -salvadores pagavam assim o meu silêncio ( e do meu irmão mais novo)  sobre o rodízio que faziam com as empregadas das casas ( as minhas irmãs, muito mais velhas,  também tinham). Uma família burguesa apressada sobre o marxismo pós-74 não teve tempo de perder os velhos hábitos.

Depois cresci e veio o Santana Lopes. Divorciei-me da Figueira. A terra ficou uma sempieterno arraial. Já pai de família, em cima de uma tragédia, descobri Caminha e Moledo. Nos últimos anos adoptei uma pequena aldeia alentejana a 700 metros do mar,  sem turistas e com uns percebes e um polvo da rochas por cuja  garantia se  necessário faço-me sócio do Sporting.

São férias? Não sei bem de quê. O corpo é o mesmo, a família é a mesma  ( e ainda bem), as maladias são as mesmas ( também ainda bem). Variam as leituras mas pouco, quase sempre estóicos ( este ano dois neoestóicos, Gracian e Shaftesbury) e o Record mais a excitação infantil da pré-época do meu Amor-Benfica.

Catita era umas férias de mim: Durante oito dias ser  um tipo simpático, tranquilo, generoso e com jeito para os trabalhos manuais.

17.07.22

Eu queria era  ser dono de um bar-discoteca. Tinha tudo  o que era necessário, não tinha nada do que era exigido para outra ocupação. O proto-negócio, por alturas de 92/93, chegou a estar apalavrado: um rés-do chão com vista para  ao muro da penitenciária de Coimbra. O meu sócio era ( e é)  um grande amigo meu,  hoje abogado business em Lisboa. Enfim, fiquei psi e hoje nem na praia, como um velho detective, consigo despir a pele.

Estou pouco tempo. Chego, corro, nado, seco-me e vou para a esplanada ler à sombra e beber um fino. Coisa para uma hora mais ou menos. Ainda assim inspecciono a savana e existem  espécies que me fascinam sempre.

Um guarda-sol e um pára-vento, lancheira. Ele, um hipópotamo, está deitado de bruços, por vezes meio vestido, a roncar. Ela, uma lagarta das pedras, besuntada com qualquer coisa acastanhada repousa numa cadeira, pernas abertas e olhos fechados. Assim conseguem estar, imóveis e concentrados.Por vezes uma ou outra cria ranhosa atarefa-se com um balde e uma pá.

Outros animais dignos de observação. Pequena manada, machos e fêmeas, a composição varia entre três a seis indivíduos, à beira-mar. Estão horas nisto. Palram tanto que até as conchas mortas e vazias se afastam. Não fazem mais nada. Imagino-os a combinar a mesma reunião para o dia seguinte.

12.07.22

Nestes tempos de igualdade a confusão instalou-se. Festival de cinema da Figueira da Foz, 1979 por aí.  Um jovem do Expresso, Miguel Esteves Cardoso, bebâdo à porta do Caçarola 2 ( mesmo em frente ao Casino) crismava Eduardo Prado Coelho de croquete literário. Assisti eu. EPC usava  a expressão confundir o género humano com o Manuel Germano. É uma boa entrada.

A igualdade, e bem, aplica-se aos direitos. As mulheres ( nem todas, eu sei) não são iguais aos homens. Não falemos de coisas evidentes. Falemos de uma qualidade que ao fim de trinta anos continua  a espantar-me no gabinete. É difícil de traduzir, por isso serei breve. Quando a coisa aperta - divórcios, crises familiares, mortes, o quotidiano carunchoso - elas exibem uma preocupação. O que me vem sempre à cabeça é o Falcão no Mundial de Espanha 82. Os ingleses têm aquela definição de corte: grace under pressure.

Do que falo? De uma alienígena capacidade de  nos momentos de grande aperto manter a unidade do regimento, dos animais, das flores, das crianças, dos velhos. Não é generosidade feminina, essa sim uma classificação machista, é outra coisa: uma superior inteligência de distinguir o essencial. O género humano do Manuel Germano.

 

09.07.22

Como pode um humano normal saber em Fevereiro ( por vezes até mais cedo) que em Agosto precisará de férias? E pior: saber onde, durante quanto tempo e  com quem?  Imaginem a Alexandra a precisar com afinco de umas férias sexuais do Bruno Rafael. Vai a um site e programa daí a seis meses uma semana na Quarteira com o Jojó ( ou com  a Nini) do pilates? Disparate.

O que temos é a falsa  abundância espectacular  própria da dinâmica do capitalismo. As praias, os apartamentos, as ementas dos restaurantes ( as saladas frescas) , a publicidade aos telemóveis ( a selfie de Verão) , as bebidas refrescantes, os festivais da juventude ( que já não existe). São as coisas que reinam e são jovens porque se perseguem e se substituem a elas mesmas, como bem explicou Debord.

O tempo e o espaço programado das férias são vendidos como uma ocasião única e  especial. Não são mais do que o descanso entre turnos do bombeiro ou do enfermeiro. É esta unidade da miséria que se esconde debaixo das oposições espectaculares, ou seja, da oposição entre trabalho e férias: é tudo trabalho.

 

 

 

05.07.22

Ela anda pelos trinta e tal, é auxiliar de acção médica, ele tem mais ou menos a mesma idade, é professor do secundário. Conheceram-se, tourearam-se - chicuelinas para aqui, muletazos para acolá -  e começaram a namorar. Até aqui  tudo vulgar. A página tantas ele fala-me de um amigo, personagem habitual nas nossas conversas:  um tipo porreiro, generoso, marxista moderno versão Zizek, radical e coiso. Ora que lhe disse este amigo? Que estava preocupado porque entendia que havia uma grande diferença cultural entre o amigo e a nova namorada. Ri-me e disse-lhe  para não se preocupar e não ligar ao snobismo ( intelectual) de strata do pessoal da luta de classes. Ainda assim vale a pena um par de notas.

As diferenças intelectuais  e/ou culturais são importantes nas relações? Nunca reparei. As de peso e tamanho podem ser : por exemplo em certas actividades ou na escolha do automóvel comum. As relativas à alimentação idem. Um tipo que só coma farelo de quinoa e creme de quiabos tarde ou cedo perde a moça para um gajo ( ou gaja) que saiba fazer um sequinho de borrego à moda do Alandroal.

Existe no entanto uma diferença que pode fazer a diferença: a de feitios. Uma tipa generosa, calma e sociável não vai a banhos com um gajo irritável, egoísta e anti-social. Enfim...há excepções. Conheço um gajo com sorte: é psicólogo, kickboxer alternativo e tem a mania que escreve umas coisas.

 

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