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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

31.08.22

Demétrio Poliocertes ( o conquistador das cidades)  da Macedónia pergunta ao derrotado  Estilpo ( de Megara)  o que perdeu. Estilpo tinha perdido, numa das inúmeras guerras megáricas, a casa, a mulher, a família e a pátria. Estilpo respondeu ao rei: Nada. Tudo o que é meu está comigo.

Desculpem o latim do título mas no original fica muito melhor. O que Estilpo faz é ensinar ao tirano um velho mandamento estóico: nunca perdemos o que não é nosso. Mais, a fortuna ( sorte, destino)  do rei é que venceu a fortuna de Estilpo; traduzindo o título deste texto:  a tua sorte venceu a minha sorte.

Dirão que é tudo muito bonito na teoria mas na prática não funciona. Depende com quem falam. Por exemplo com um sobrevivente do extermínio nazi ( perdeu tudo) que refaz a sua vida na América e vive até aos noventa anos. Ou  com a senhora cuja história ja contei: perde dois filhos  num acidente inacreditável ( um incêndio com uns cartuchos de caçadeira), perde  o marido, lerpa com um cancro e aos setenta e tal  ainda procura tratamento para se sentir com mais energia.

No quotidiano vulgar de Lineu  a regra também se aplica. Quantas vezes nos enfurecemos ou desesperamos porque julgávamos nossas certas coisas ( um amor, um carro, um gato) que perdemos?

 

 

20.08.22

O mito de que a velhice traz sabedoria é um jogo  literário entre linhas, agradável de ver, mas só isso. Trato aqui da velhice, a verdadeira, a da Bayer.

Passo parte da  semana profissional com velhos. Não bispo que sabedoria possa trazer um corpo encalacrado, pernas inchadas, ouvidos de mercador, vista de toupeira, viuvez, solidão, vinte comprimidos por dia, dores avulsas, cabeça de manteiga. A acrescentar a tudo isto a certeza temperada de que o fim está próximo e é tão certo como os impostos.

Eles não falam de sabedoria nenhuma. Pelo contrário, dizem-me que já não percebem nada, que esqueceram quase tudo. Não compreendem o que os filhos e os médicos ( os anjos da morte) lhes dizem, não entendem por que razão não podem beber vinho ou o olival está ao abandono.

Uma secção particular vive no depósito. Ele há bons e maus mas são todos péssimos.O final da corrida ser passado numa casa que não conhecem e com pessoas que nunca tinham visto  ajuda imenso à sabedoria: sabem que é essa a verdadeira última morada e que  todos os dias são enterrados. Vivinhos da silva.

13.08.22

Como aqui informei os meus trinta e quatro leitores, um dos neoestóicos que levei este ano para  a tortura das férias foi o Gracián. Só tinha a Arte da Prudência, mas O  Homem UniversalHerói acrescentam à marinada e muito bem. Sendo um autor coevo de Espinoza, Quevedo, Pascal etc também bebe nas mesmas influências clássicas, sobretudo em Epicteto. Certo, mas para além da milionésima receita das virtudes do príncipe, os conselhos dos estóicos são sempre bons para suportar a praia.

O natural de Belmonte ( a espanhola)  recorda-nos uma crítica:  a paixão consiste não em ficarmos emocionados mas em deixarmo-nos ir e seguir esse movimento fortuito.  Como vêem, os estóicos não são os sacanas frios e insensíveis que o cinema ou os livrinhos de citações pintam: são piores. Talvez, mas úteis.

Vejamos duas situações práticas envolvendo automóveis:

Uma discussão no trânsito. O outro gajo sai do carro ao berros insultando os nosso progenitores ( ou o Benfica) e avança ameaçador. Se desligarmos do asco e da ira e o virmos apenas como um rotineiro parceiro do ringue, os movimentos ( um directo à seccção hepática por exemplo) saem harmoniosos e naturais. Nada fortuitos.

A segunda também é boa. Uma senhora  ( no caso de sermos um pobre hetero), traduzindo as maravilhas da evolução, estaciona ao nosso lado  e roga-nos que a ajudemos a resolver uma contractura muscular no glúteo superior esquerdo. Se apenas nos emocionarmos com o nascimento da ideia, guardamo-la e explicamos que temos de ir dar milho às pombas. Haverá mais glúteos na vida e sem estacionamento em paralelo.

12.08.22

Sou um maníaco de biografias. As mais antigas as de Suetónio sobre malucos romanos,  a mais recente a de um orgão, o Conselho da Revolução, uma cena bem esgalhada pela  Maria Inácia Rezola / David Castaño. Era a mais recente porque levei para a tortura da praia a do Cardoso Pires, autor Bruno Vieira Amaral. De escritores tenho poucas, prefiro as correspondências ( Unamuno/Pascoaes e H.Hesse /Thomas Mann são do lombinho).

Comecei então a ler o livro do BVA em posição de combate ( só um pé atrás, joelhos flectidos). À medida que as páginas corriam tirei as luvas, peguei numa toalha e numa água e sentei-me nos pequenos degraus de acesso ao ringue. Como nas melhores das melhores que tenho sobre políticos, a história de Cardoso Pires consegue isso mesmo: pôr-nos a ler uma história. Ou seja, o homem não  é nem esquartejado nem incensado, o autor não nos incomoda com as suas opiniões, os factos são postos na mesa bem atoalhada.

Ao leitor cabe escolher vitualhas mais ou menos apetitosas, voltar atrás  como numa história - desculpa, repete lá isso outra vez - antecipar desenvolvimentos. A escrita é seca e vivíssima como a do Cardoso Pires; e não conheço melhor forma de lhe  fazer justiça.

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