26.10.22
Todos conhecemos o enunciado de base: Isto agora é uma desgraça, não há valores, no meu tempo não era assim, caminhamos para o desastre.
No meu tempo é a-histórico. Conheci reaccionários monárquicos de vinte anos que diziam estas coisas. É verdade que tende a ser mais comum nas pessoas de uma certa idade e barriga, mas não é exclusivo.
A mentalidade reaccionária é sobretudo utópica. Recusa o mundo que existe sonhando com um que já existiu e que, pela lei da vida, não regressa. O nazismo é um exemplo estelífero. Confundiu interpretações iletradas da política expansionista de velhos junkers ( camponeses) prussianos ( Frederico e Bismark por ex) com ópera e literatura, amalgamando tudo numa trouxa sociopata. O Freitas, com a sua barriga de 50 anos e horrorizado com as capas do Correio da Manhã, também suspira com o mundo plácido e respeitador dos seus pais. A memória, essencial em todas as operações da razão, foge ao Freitas: na aldeia dos seus avós o almoço de domingo e missa lavada escondia a semana de fome aprumada, água do poço e porrada nas desgraçadas que nem os cães levavam.
A utopia reaccionária também vive nos cavalheiros e cavalheiras que sabem muito bem a maneira como deveríamos viver e com a qual concordaríamos se fôssemos diferentes do que somos. Não somos e não gostamos que meia dúzia de iluminados reunidos numa cave decidam as nossas vidas. Os jacobinos, e as suas declinações posteriores, que ainda nem a caneta que escreveu liberdade para o povo secou e já estão a prender e fuzilar o povo, são tão reaccionários como o Freitas. Ambas as utopias recusam o mundo em que vivem e a sua mudança gradual, ambas se inscrevem numa fantasia psicótica. E muitas vezes mortal.