22.02.22
Quem é que hoje ainda convida um amigo para comer apenas umas batatas caseiras cozidas com um fio de azeite de lagar colectivo, daquele que mancha os dentes?
A cozinha é uma actividade anarquista e por isso recupera raízes tão antigas. Não é bem uma organização nem uma sociedade, mas uma ideia anarquista. Mesmo quando cozinhamos só para nós, pensamos : fulano ou beltrana haveria de gostar. As mais das vezes cozinha-se para partilhar e oferecer, recusando a ideia de posse. A comida só existe para ser repartida. Mauss sabia isto tudo.
As tais raízes são colectivas e estranhas à ideia de lucro. Claro que, como tudo o resto, a cozinha soçobrou ao apetite comercial e ao abastardamento dos géneros. Da indústria alimentar de massas ( as humanas...) à estética pornomolecular pode sobrar pouco para a militância anarquista, mas sobra alguma coisa. Escolher nos mercados tradicionais as pequenas vendas das velhotas ignorando as prateleiras liofilizadas é um passo. As trocas envolvem dinheiro, é verdade, mas cinco euros trazem tomates, ovos sujos, coentros, cebolas novas terrosas e ainda sobra muito.
Outro passo pode ser remar contra a corrente. Se a ideia coerciva de Estado for a de comer para correr, a perturbação anarquista será a de comer para perder tempo; desprezá-lo mesmo. Sobretudo ir passando a mensagem de que uma mesa simples, ligada à companhia e à partilha mas exigente no sabor das coisas, pode fazer cócegas à polícia higienista ou à uniformização do ketchup entre dois likes no instagram. É tonto ou irreal? Não sei. É meio anarca.