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PERDER BEM por Filipe Nunes Vicente

22.02.22

 

Quem é que hoje ainda convida um amigo para comer apenas  umas batatas caseiras cozidas com um fio de azeite de lagar colectivo, daquele que mancha os dentes?

A cozinha é uma actividade anarquista e por isso recupera raízes tão antigas. Não é bem uma organização nem uma sociedade, mas uma ideia anarquista. Mesmo quando cozinhamos só para nós, pensamos : fulano ou beltrana haveria de gostar. As mais das vezes cozinha-se para partilhar e oferecer, recusando a ideia de posse. A comida  só existe para ser repartida. Mauss sabia isto tudo.

As tais  raízes  são colectivas  e estranhas à ideia de lucro. Claro que, como tudo o resto, a cozinha soçobrou ao apetite comercial e ao abastardamento dos géneros. Da indústria alimentar de massas ( as humanas...)  à  estética pornomolecular pode sobrar pouco para a militância anarquista, mas sobra alguma coisa. Escolher nos mercados tradicionais  as pequenas vendas das velhotas ignorando  as prateleiras liofilizadas é um passo. As trocas envolvem dinheiro, é verdade, mas cinco euros trazem tomates, ovos sujos, coentros, cebolas novas terrosas e ainda sobra muito.

Outro passo pode ser remar contra a corrente. Se a ideia coerciva  de Estado for a de comer para correr, a perturbação anarquista será a de comer para perder tempo;  desprezá-lo mesmo. Sobretudo ir passando a mensagem de que uma mesa simples, ligada à companhia e à partilha mas exigente  no sabor das coisas, pode  fazer cócegas à polícia  higienista  ou à uniformização do ketchup entre dois likes no instagram. É tonto ou irreal? Não sei. É meio anarca.

 

 

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