29.03.22
A gente vai-se esquecendo. Não falo do défice cognitivo ( trabalho com isso todos os dias, aqui estou de férias), mas das pessoas. As grandes rupturas são espectaculares, ribombam e fazem eco, mas o deslace, lento e seguro , tem muito mais sumo. A distância, a idade, um outro engulho mal resolvido e la nave va. Sem zangas, apenas com silêncio. Ficam as tradicionais memórias dos bons tempos bem arrumadinhas ao lado do amargor presente e estelífero da separação.
Um autor esquecido, Miguel Rovisco, em Cobardias ( Ed Ática 1988) , avisa: a tarefa mais urgente de um adulto não está em recordar-se de todos os ensinamentos do passado, mas em descobrir o meio mais eficaz de esquecê-los. As situações de ruptura abrigam bem o aviso de Rovisco, mas as do deslace também.
Conheci pessoas que há quatro, seis, dez anos, sabiam o que recordar, que arquivaram as suas experiências e construiram uma base de referências e que se vêem hoje na posição de ter de esquecer tudo. Ao contrário dessa grande lenda que é o stress pós-traumático ( lenda porque não queremos esquecer, queríamos era que as coisas se tivessem passado de outro modo) , esta rasura não é causada pela emoção. É uma escolha racional: o que aprendi não me serve agora de nada.
Isto aplica-se aos deslaces. O que aprendemos da relação anterior à decomposição não nos serve de nada no novo cenário. É outro planeta com uma física própria. Respira-se mal.